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'Porta do inferno': misterioso templo matava quase tudo que chegasse perto

Você teria coragem de entrar aí? - Carole Raddato/WikiCommons
Você teria coragem de entrar aí? Imagem: Carole Raddato/WikiCommons

Colunista do UOL

23/04/2023 04h00

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37º55'N, 29º07'L
Ruínas de Hierápolis
Pamukkale, Denizli, Turquia

"O plutônio, situado abaixo de uma pequena crista da montanha, é uma abertura com tamanho suficiente para admitir um homem, com uma descida para uma grande profundidade", descreveu Estrabão, o famoso geógrafo grego, ao visitar a cidade de Hierápolis. Essa entrada que caía no escuro era preenchida por um vapor escuro, turvo e denso. As pessoas, em volta, a uma distância segura, assistiam ao ritual centrado naquele buraco misterioso e pestilento.

"Os animais que entram pela grade morrem instantaneamente. Até os touros caem e são retirados mortos. Nós mesmo jogamos pardais, que imediatamente caíram sem vida", relatou Estrabão.

Impressionado, o pensador do século 1º a.C. registrou que, misteriosamente, os sacerdotes eunucos que administravam o local se locomoviam numa boa. Ele levantou algumas possibilidades para o fenômeno:

"Aproximam-se até a abertura, inclinam-se sobre ela e descem até certa profundidade, contendo a respiração o máximo possível, pois percebemos por seus sinais no rosto algum sentimento sufocante. Essa isenção pode ser comum a todos os eunucos; ou pode ser confinada aos eunucos empregados no templo; ou pode ser o efeito do cuidado divino, como é provável no caso de pessoas inspiradas pela divindade; ou talvez possa ser obtida por aqueles que possuem certos antídotos."

No mundo grego-romano, acreditava-se que era o próprio bafo podre de Hades que vinha do subterrâneo e ceifava quem chegasse perto. Hades, ou Plutão, era o deus do submundo. Por isso, esse portão da morte, essa "porta da desesperança", era chamado de "plutônio" (o elemento químico plutônio tem esse nome em homenagem a Plutão, o planeta-anão que, por sua vez, foi nomeado em referência à divindade).

Que lugar era esse?

Anfiteatro de Hierápolis - mrtekmekci/Getty Images - mrtekmekci/Getty Images
Anfiteatro de Hierápolis
Imagem: mrtekmekci/Getty Images

Localizada na moderna Pamukkale, no sudoeste da Turquia, Hierápolis era uma cidade dedicada a Cibele, a deusa-mãe da Anatólia. Desde o século 2º a.C., essa cidade grega atraía visitantes para suas fontes termais. A grande necrópole mostra que Hierápolis era um destino desejado entre as classes privilegiadas.

Incorporada aos domínios romanos em 133 a.C., Hierápolis cresceu e se desenvolveu. Mesmo destruída em um terremoto, foi reconstruída nos moldes do romanos. Imperadores como Caracala a visitaram. Líderes cristãos a adotaram. Filipe, um dos 12 apóstolos, teria morado, pregado e sido executado ali. Em 2011, sua possível tumba foi localizada.

Quando os cristãos se tornaram dominantes, no século 4º, o plutônio foi fechado e preenchido com pedras. As termas viraram igrejas. Hierápolis seguiu habitada por bastante tempo, mas, após uma série de terremotos e uma lenta decadência, acabou abandonada mil anos mais tarde.

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As ruínas que podem ser visitada por turistas
Imagem: Krzysztof Matusiak / 500px/Getty Images/500px

Arqueólogos descobriram a cidade, seus templos, teatro e outras estruturas significativas, a partir do século 19. Mas, apesar de abandonada, pelo menos uma "atividade" não deixou de funcionar em todo esse tempo: os gases continuavam matando os animais.

Aparentemente ninguém percebeu, porque o culto a Cibele já era passado há muitos séculos. E o plutônio estava deserto, assim como todo o resto da cidade. Mas que eles matavam, matavam. Em 2011, foi o que arqueólogos constataram.

O segredo do veneno

Nos últimos anos, descobertas impressionantes ajudaram a explicar o culto e o trabalho dos sacerdotes. Hierápolis ficava em uma região de muita atividade geológica. Além das águas termais que lhe deram fama, outro fenômeno rolava em seu subsolo, através de uma fissura que emitia dióxido de carbono.

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Parte da estrutura do teatro está preservada
Imagem: Cavan Images/Getty Images/Cavan Images RF

Em 2018, um estudo da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, mediu as concentrações de gás carbônico no antigo templo. Descobriu que, durante o dia, o calor do dia dissipa o gás. Mas, à noite, ele formava uma espécie de lençol na arena — como o dióxido é mais denso que o ar, ele fica mais próximo do solo.

No nascer do sol, a concentração de gás carbônico a uma altura de 40 centímetros chega a 35%, o suficiente para asfixiar animais e até pessoas em minutos. Provavelmente, os eunucos faziam seus rituais nas primeiras horas do dia ou da noite, quando havia mais gás concentrado. Os animais sacrificados não eram muito altos (mesmo as vacas modernas têm, em geral, 1,50 m de altura), então eles ficavam tontos e, ao cair, estavam na faixa mais mortal do dióxido.

Em outras palavras, não é que os sacerdotes tinham uma proteção divina. Eles só eram altos o suficiente para aguentar mais e sabiam dos perigos que exalavam do plutônio. Então, eles se precaviam (e, inclusive, ficariam sobre pedras, para ganhar alguns centímetros providenciais de altura).

Estrabão sugeriu que o fato de os sacerdotes serem eunucos os salvava do envenenamento. Como castração não impede que alguém sufoque até a morte, os pesquisadores alemães acreditam que eles tinham, sim, plena consciência do perigo e não se arriscavam, segundo o site "Science".

De acordo com o arqueólogo Francesco D'Antria, da Universidade de Salento, na Itália, os sacerdotes, na real, eram ousados. D'Antria liderou os estudos que descobriram o novo plutônio no começo dos anos 2010 (há um outro portão do submundo, ali perto e menos mortal, conhecido pela ciência há mais tempo).

Os arqueólogos italianos encontraram muitas lamparinas a óleo antigas nas imediações da entrada do portão, o que sugere que os eunucos ficavam próximos à boca com frequência — o que atestaria, inclusive, a qualidade do relato de Estrabão, que falou que os sacerdotes eram ousados e chegavam a colocar a cabeça para dentro.

Em 2013, a área ao redor foi fechada para o público por motivos de segurança. Mais trabalhos de escavação se seguiram, as ruínas do portão foram restauradas e estátuas foram colocadas de pé no topo da estrutura em forma de terraço. Depois, o local ganhou uma passarela. Em 2022, o plutônio foi reaberto.

Essas medidas eram necessárias. Na gruta imediatamente abaixo do portão, a concentração de gás carbônico atinge 91%. É o inferno.

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As piscinas termais que atraem milhares de turistas
Imagem: Cobalt88/Getty Images/iStockphoto

O fenômeno tem a mesma origem das águas termais dos famosos terraços da vizinha Pamukkale, em que águas carregadas de calcita criaram um cenário surreal, segundo a Unesco, "feito de florestas minerais e cachoeiras petrificadas". Pamukkale, que em turco significa "castelo de algodão", é um destino natural colado ameaçado pelo turismo excessivo. O uso descontrolado das piscinas, que inclui até desvio das águas para os hotéis, está secando muitas delas.

O bafo assassino de Hades acrescenta mais um atrativo à impressionante Hierápolis, que, estranhamente, mesmo ali ao lado do topo de Pamukkale, não tem o mesmo fluxo de visitantes. A maioria se satisfaz com rápidos passeios para a impressionante montanha branca e suas piscinas calcárias a partir de Istambul ou de Izmir e segue viagem para outros concorridos destinos turcos. Se os deuses do submundo quiserem, a recém-reinaugurada "porta do inferno" ajudará a reverter esse quadro.


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