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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Palco de tragédia, barco histórico voltará à cidade onde afundou há 75 anos

Prefeitura de Osório
Imagem: Prefeitura de Osório

Colunista do UOL

13/08/2022 04h00

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Ventava forte na região das lagoas do litoral do Rio Grande do Sul na manhã daquele sábado, 20 de setembro de 1947.

O vento era tão violento que o responsável pelo pequeno porte lacustre da Lagoa do Marcelino, na cidade de Osório, tentou impedir que o barco a vapor Bento Gonçalves partisse rumo ao distrito de Maquiné, distante uns 40 quilômetros dali, onde haveria um comício da União Democrática Nacional - UDN, já que era época de campanha eleitoral - além de aniversário da Revolução Farroupilha, data marcante para qualquer gaúcho.

Como ainda não havia estradas na região, só uma sucessão de lagoas interligadas por canais, todo transporte tinha que ser feito de barco.

Daí o pequeno vapor Bento Gonçalves, de 15 metros de comprimento, construído 20 anos antes, estar com sua capacidade máxima de ocupação: 20 pessoas, a maioria políticos influentes — deputados, coronéis e até um ex-prefeito da própria cidade.

Rumo à tragédia

 Histórias do Mar :: Barco a vapor Bento Gonçalves - Arquivo Histórico Antônio Stenzel Filho - Arquivo Histórico Antônio Stenzel Filho
Imagem: Arquivo Histórico Antônio Stenzel Filho

Tentar impedir a partida do barco por questões de segurança, bem que o fiscal do porto tentou.

Mas quem haveria de confrontar — e contrariar — tantas autoridades, ansiosas por chegar ao comício, onde até uma banda de música os aguardava?

Assim sendo, a despeito das fortes rajadas daquele fim de inverno, o Bento Gonçalves partiu.

Rumo à tragédia.

"Quem manda sou eu"

Logo na travessia da primeira lagoa, um dos passageiros, o juiz e pescador nas horas vagas João da Costa Vilar, que não era político e conhecia bem as artimanhas das águas rasas e traiçoeiras das lagoas gaúchas, tentou alertar o piloto do barco sobre o melhor rumo a tomar, naquelas condições de vento.

Mas ouviu como resposta um "aqui quem manda sou eu" e se calou.

Até porque, ao contrário dos demais passageiros, ele nada tinha de influente.

"Tapão" de vento

Enquanto o vento atingia o barco só pela parte de trás, não houve maiores problemas, exceto o frio de congelar pinguins.

Mas, quando o pequeno vapor venceu um pequeno canal abrigado e entrou na maior lagoa da região, a da Pinguela, uma rajada ainda mais forte (um "tapão de vento", como diziam os velhos moradores da região — como aquele que tentara alertar o piloto sobre os cuidados com o rumo a ser seguido) atingiu em cheio a lateral do barco e o fez inclinar muito mais do que deveria.

Destino selado

Com o movimento inesperado, todos os passageiros foram arremessados para o mesmo lado, aumentando sobremaneira o peso naquela parte do casco e selando o fatídico destino daquela imprudente viagem.

Inclinado pelo vento e desestabilizado pelo peso concentrado, o Bento Gonçalves deitou na superfície agitada e gelada da lagoa naquele frio início de tarde, inundou rapidamente e afundou, só deixando fora d´água a ponta da sua chaminé.

Morreram 18 dos 20

Quase todos os ocupantes do barco foram arremessados na água fria feito gelo, vestindo pesadas roupas de feltro, necessárias contra o rigor do inverno gaúcho, mas que, uma vez encharcadas, passaram a atuar como âncoras, impedindo que eles nadassem.

O esforço deixou-os rapidamente esgotados, e as mortes foram se sucedendo, em espantosa velocidade.

Quem estava na cabine do barco, teve ainda pior sorte, porque ficou trancado no casco submerso e igualmente morreu afogado.

Em questão de minutos, 18 dos 20 ocupantes do Bento Gonçalves estavam mortos.

Se abrigou na chaminé

Só dois ocupantes do vapor sobreviveram: o sapateiro Alzemiro Viana Negreiros, que se enfiou dentro do tubo saliente da ponta da chaminé do barco afundado (e que, por isso, sofreu queimaduras terríveis no corpo), e aquele morador de Osório que havia alertado o piloto do barco, minutos antes da desgraça.

E ele só não morreu também porque conseguiu se livrar a tempo das pesadas roupas que vestia, e nadou para a margem da lagoa.

Lá, foi encontrado por uma menina, que chamou os pais, e, a cavalo, levado para a cidade.

Só então a pequena Osório ficou sabendo daquele desastre mais que anunciado.

Iria se matar

Ao amanhecer do dia seguinte, com o arrefecimento do vento, moradores de Osório partiram em busca de mais sobreviventes.

Mas só encontraram vivo o sapateiro ferido, que se abrigara dentro da chaminé do barco.

E, por muito tempo, nem ele teria sobrevivido, porque o homem já havia decidido usar o revólver que tinha para se suicidar, caso não fosse rapidamente encontrado.

O barco foi resgatado

 Histórias do Mar :: Barco a vapor Bento Gonçalves - Divulgação/Prefeitura de Osório - Divulgação/Prefeitura de Osório
Imagem: Divulgação/Prefeitura de Osório

Nos dias subsequentes, um a um, os corpos dos mortos foram aparecendo.

Em seguida, foi resgatado, recuperado e voltou a navegar o próprio barco afundado - o mesmo que, agora, 75 anos depois, a cidade de Osório está em vias de transformar em uma espécie de monumento, em homenagem às vítimas, à navegação lacustre (que, no passado, foi a base do desenvolvimento da região), e à história do município.

Para isso, no entanto, é preciso, primeiro, trazer o barco de volta à cidade, já que — sim! — ele ainda existe.

E até hoje navega.

Virou rebocador de porto

 Histórias do Mar :: Barco a vapor Bento Gonçalves - Divulgação/Prefeitura de Osório - Divulgação/Prefeitura de Osório
Imagem: Divulgação/Prefeitura de Osório

Três quartos de séculos depois do fato que marcou para sempre a história de Osório - e quase 100 anos após ter sido construído -, o ex-vapor Bento Gonçalves, agora movido por um moderno motor a diesel, ainda navega normalmente, e diariamente, no porto de Porto Alegre, onde hoje atua como rebocador de pequenas embarcações.

Pediram a doação do barco

Ao descobrir isso - fruto do empenho de um empresário da cidade, interessado em resgatar esta parte da história do município -, uma comitiva de Osório, liderada pelo próprio prefeito da cidade, Roger Caputi, foi pedir a "doação" do histórico barco (ou, como eles preferem dizer, a "repatriação" da embarcação) à administração do porto da capital gaúcha, hoje dona do Bento Gonçalves - que manteve até o mesmo nome.

Para surpresa geral de todos, a pedido foi muito bem recebido, e a empresa já está cuidando dos detalhes para ceder o barco para a cidade que o tornou tragicamente famoso no passado.

Embora, hoje, poucos saibam disso.

Bisneto de sobrevivente

"Houve extrema receptividade e boa-vontade da administração do porto em doar o barco, mas nem eles sabiam do passado do Bento Gonçalves", diz Vainer Armiche, o empresário que descobriu o paradeiro da centenária embarcação.

 Histórias do Mar :: Barco a vapor Bento Gonçalves - Divulgação/Prefeitura de Osório - Divulgação/Prefeitura de Osório
Imagem: Divulgação/Prefeitura de Osório

"Eles conheciam bem o barco, mas não sabiam a sua história. E nós conhecíamos bem a história, mas nunca tínhamos visto o barco. Nem achávamos que ele existisse mais", recorda Vainer, que, ao sair da reunião, que aconteceu no mês passado, testemunhou uma surpreendente coincidência: o motorista da prefeitura que levara a comitiva à Porto Alegre era bisneto daquele sobrevivente do desastre que se abrigou na chaminé do barco.

"Ele ficou emocionado, e nós também", recorda o prefeito de Osório, que, agora, já sonha com a restauração do barco (que, embora em surpreendente bom estado, perdeu algumas características do passado, como próprio mecanismo a vapor), bem como a reconstrução do trapiche do porto de onde ele partiu para aquela infame travessia.

"Volta para casa"

"O Bento Gonçalves será como um monumento, para as pessoas tirarem fotos e conhecerem esta parte da nossa história", diz o prefeito.

"Na escola, a gente aprende a história de outros países, mas não conhece a da própria cidade onde vive", lamenta, com a esperança de que a volta do lendário barco à Osório mude isso.

Estamos só esperando que os trâmites burocráticos sejam resolvidos, para que o Bento Gonçalves volte para casa", diz o prefeito da cidade.

Memória da cidade

"Para toda a região das lagoas do litoral gaúcho, o Bento Gonçalves não é apenas um barco: é um pedaço ainda vivo da nossa história, e isso merece ser preservado", diz a historiadora osoriense Marina Raymundo da Silva, autora de seis livros sobre Osório e a navegação lacustre nas lagoas do Rio Grande do Sul.

O retorno desse barco significa a recuperação de uma parte da memória da cidade, embora ele tenha sido marcado por uma tragédia: a maior da história das lagoas, até hoje", atesta a historiadora.

Um estado que preza sua história

Ao contrário da maioria do país, o Rio Grande de Sul é um estado que preza suas tradições, e, na medida do possível, tenta preservá-las.

Ou, quando isso não é possível, reconstituí-las.

Histórias do Mar - Projeto Seival - Projeto Seival
Imagem: Projeto Seival

Recentemente, o lendário barco Seival, do início do século 19, usado pelo revolucionário Giuseppe Garibaldi na Guerra dos Farrapos, ganhou, graças ao empenho de um professor, o gaúcho Antonio Carlos Rodrigues, uma réplica fiel, que emocionou todos os moradores de Porto Alegre, ao navegar nas águas do Guaíba, como fez no passado, com Garibaldi.

Já o Bento Gonçalves, embora ainda em condições de navegar, não deverá ser usado nas lagoas de Osório, porque o objetivo é que o barco volte a ter as características originais de um vapor, mecanismo não muito fácil de encontrar hoje em dia.

Matou e voltou

Embora sempre desperte incômodos sentimentos, um barco voltar a navegar após ter afundado — e matado — muitas pessoas, está longe de ser um fato raro.

Ao contrário, é bem mais frequente do que parece, embora, quase sempre, isso seja omitido aos ocupantes — especialmente, no caso de barco de transporte de passageiros.

Reprodução Histórias do Mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Um dos casos mais emblemáticos disso é o do "navio", como são chamados os grandes barcos nos rios da Amazônia, Sobral Santos, que, em 1981, afundou junto ao porto de Óbidos, no Rio Amazonas, matando cerca de 90 das supostas 270 pessoas que transportava, e, ainda assim, meses depois, disfarçado com outro nome, Cisne Branco, voltou a navegar normalmente, o que acontece até hoje, 41 anos depois — clique aqui para conhecer este caso, que, apesar de ser considerado uma das piores tragédias já ocorridas nos rios amazônicos, não gerou nenhuma punição aos responsáveis.

Faz parte da história

Nem de longe, a tragédia do Bento Gonçalves teve as dimensões da do Sobral Santos — nem, em momento algum, foi escondida ou camuflada com artifícios, como a mudança no nome do barco.

Muito pelo contrário.

O que se pretende ao trazer o vapor de volta às águas onde aconteceu o desastre que o deixou tristemente famoso, é justamente reavivar o drama que a cidade de Osório viveu naquela fria tarde de 20 de setembro de 1947, 75 anos atrás.

Faz parte da nossa história", resume o prefeito da cidade. "E todos merecem conhecê-la".