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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Justiça manda voltar porta-aviões brasileiro que vai para desmanche. Em vão

Antônio Gaudério/Folhapress
Imagem: Antônio Gaudério/Folhapress

Colunista do UOL

08/08/2022 15h00

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Na última quinta-feira, o rebocador holandês Alp Centre partiu do Rio de Janeiro, levando a reboque aquele que já foi o maior navio militar brasileiro: o ex-porta-aviões São Paulo, que estava parado há cinco anos.

Destino: um estaleiro em Aliaga, na Turquia, onde o imenso navio, de 266 metros de comprimento, será desmontado e transformado em sucata.

Teria sido o fim de uma novela que se arrasta desde que a reforma do velho porta-aviões, orçada em cerca de R$ 1 bilhão, foi considerada inviável.

Mas não.

Desde então, o caso tomou apenas outro rumo: o da Justiça.

Ação movida por um cidadão

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Na própria quinta-feira, inconformados com a partida, rumo ao fim, do porta-aviões, um grupo de entusiastas, liderados pelo paulista Emerson Miura, um ex-soldado da Aeronáutica que decidira fundar um instituto, o São Paulo-Foch, para tentar transformar o navio em um centro cultural e assim preservá-lo, conseguiu na Justiça uma liminar ordenado que a Marinha do Brasil, que vendera o navio para desmanche através de um leilão, o trouxesse de volta ao porto do Rio de Janeiro, "até manifestação do Ministério Público Federal".

Apesar disso, até agora, nada aconteceu.

A decisão da Justiça não foi acatada e o outrora único porta-aviões do país segue sendo rebocado para a Turquia, rumo ao ferro-velho.

Sem poder ser rastreado

Também desde a última sexta-feira, um dia após a partida e a expedição da liminar impedindo a saída do navio, a localização do rebocador holandês que o transporta não está mais disponível através dos mecanismos de rastreio no mar, via GPS, o que, de acordo com Miura, pode ser uma tentativa de driblar a imposição da Justiça.

"Eles podem ter desligado o transponder do rebocador, que permite o rastreio das duas embarcações, até que saiam das águas territoriais brasileiras, o que tornaria sem efeito, ou no mínimo, bem mais difícil, o cumprimento da decisão da Justiça", conjectura Miura, que, no entanto, garante que, ainda assim, não irá desistir de tentar "salvar" o porta-aviões.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

"Estamos em contato com órgãos internacionais e entidades ambientalistas da Turquia para que sigam monitorando o porta-aviões e impedindo que ele seja demolido. É possível que ele chegue à Turquia e tenha que ser devolvido ao Brasil, mas por outro motivo: o amianto, material tóxico e cancerígeno, que ainda existe em grande quantidade dentro do navio", explica.

Partiu, apesar da liminar

O amianto, presente em tubulações e equipamentos térmicos do velho porta-aviões, foi um dos argumentos usados pelo instituto encabeçado por Miura para conseguir a liminar e tentar impedir a saída do navio do mar territorial brasileiro — documento que, segundo ele, foi expedido quando o porta-aviões ainda não havia partido, mas, mesmo assim, ignorado.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Não se sabe quanto amianto ainda há dentro do porta-aviões, nem o que foi feito do que dele foi retirado, apenas para cumprir os protocolos do transporte", alega Miura.

"E isso está preocupando os ambientalistas da Turquia, que não querem receber esse amianto brasileiro", diz Miura, cuja decisão quixotesca de "proteger", praticamente sozinho, o enorme porta-aviões foi tomada por um motivo também de ordem pessoal.

"Luto por uma causa"

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Desde 2018, quando criamos o instituto, eu e minha mulher, Simone, passamos a lutar para transformar o São Paulo em um centro cultural flutuante. Ela morreu, de câncer, no ano passado, mas me disse para seguir em frente e não desistir do projeto. É o que estou fazendo", explica Miura, que hoje ganha a vida como massoterapeuta, mora na Zona Leste de São Paulo, e enfrenta dificuldades financeiras até para manter o site do instituto no ar, na Internet.

"Já me chamaram de tudo: romântico, sonhador, maluco. Não me importo. Luto por uma causa, que é a conservação de um bem público e a sua transformação em algo educativo, não em sucata", diz Miura.

Enquanto o navio estiver inteiro, lutarei por ele. Também em memória de minha mulher".

História conturbada

O ex-porta-aviões São Paulo foi vendido pela Marinha do Brasil à empresa turca Sok Denizcilikve Tic por R$ 10,5 milhões, através de um conturbado leilão, que, na primeira tentativa, sequer teve interessados.

Conturbada, também foi a própria história do porta-aviões na corporação brasileira.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

Comprado, usado, da França, no ano 2000, o São Paulo (até então, chamado Foch), substituiu o lendário porta-aviões Minas Gerais, primeiro navio-aeródromo que o Brasil teve, também vendido para um desmanche, na Índia, também no início dos anos 2000.

Mas a vida útil do porta-aviões na corporação foi curta e problemática.

Acidente com mortes

Com uma seguida série de problemas mecânicos (entre eles, o trágico rompimento de um duto de vapor, em 2004, que resultou na morte de três tripulantes), o São Paulo nunca conseguiu navegar por muito tempo, sem precisar de reparos.

No total, ao longo dos 17 anos que passou na Marinha do Brasil, navegou pouco mais de 200 dias, o que o tornou um incômodo na frota.

O que fazer com ele?

Quando foi oficialmente desativado, em 2017, o São Paulo era o mais antigo porta-aviões ainda em operação (ou quase isso...) no mundo.

Em seguida, o problema passou a ser outro: o que fazer com ele?

Foi quando Miura criou o instituto e passou a negociar com a Marinha a transformação do porta-aviões em uma espécie de museu flutuante, o que logo foi descartado pela entidade.

Desde então, o obstinado Miura vem tentando livrar o grande navio do puro e simples desmanche.

"É uma oportunidade única de preservar o maior navio que o Brasil já teve", resume.

"Porta-aviões" só no nome

Para ocupar o lugar deixado com a venda do São Paulo para o desmanche, a Marinha brasileira comprou, por cerca de R$ 400 milhões, da Inglaterra, o então porta-helicópteros Ocean, que aqui virou "porta-aviões" Atlântico, graças a uma marota reclassificação da embarcação como "navio-aeródromo", já que ele também permite pousos e decolagens de aviões com capacidade de fazer isso verticalmente, como os helicópteros, embora o Brasil não tenha nenhuma aeronave desse tipo.

Hoje, o navio-aeródromo Atlântico é o único "porta-aviões" do Brasil, título que já foi do São Paulo, agora a caminho de virar sucata.

O mistério do antecessor

O porta-aviões São Paulo, que deve levar cerca de um mês para chegar à Turquia, caso a decisão da Justiça brasileira não seja obedecida (como, ao que tudo indica, não será), foi o quinto navio da história da corporação a ter este nome, em homenagem ao estado mais desenvolvido do país.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Ironicamente, o seu antecessor, o encouraçado São Paulo, teve um destino misterioso e trágico, justamente quando também era rebocado rumo ao desmanche, no meio do Atlântico, em 1947 — clique aqui para conhecer esta história, que resultou também na morte dos tripulantes que seguiam a bordo.

Caso a ordem da Justiça não seja acatada, torce-se para que o destino do porta-aviões, no qual também há pessoas embarcadas, para ajudar na operação de reboque, não seja o mesmo do fatídico encouraçado homônimo.