Histórias do Mar

Histórias do Mar

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

45 anos depois, filha tenta provar morte do pai no mar: 'Quero ponto final'

Nas primeiras horas da manhã de 6 de outubro de 1979, o pescador ocasional capixaba José Carlos Siqueira Ribeiro, que todos conheciam como "Zequinha", de 24 anos, saiu bem cedo da praia de Manguinhos, no litoral norte do Espírito Santo, para pescar com o amigo Rubens Sales Primo, o "Santana", um juiz de futebol nas horas vagas, e o filho dele, de apenas 13 anos de idade.

E nenhum deles retornou vivo.

Seis dias depois, o corpo do filho do juiz apareceu a quase 100 quilômetros dali, juntamente com o barco, ao qual ele estava atado por uma cordinha amarrada ao pulso.

No dia seguinte, em outro ponto do litoral capixaba, surgiu o corpo do pai do garoto, igualmente vítima de afogamento.

Já o cadáver de Zequinha nunca apareceu.

E isso fez com que ele não tenha sido oficialmente dado como morto até hoje, quase meio século depois.

Imagem
Imagem: Arquivo pessoal

Situação absurda

É esta situação — absurda, em todos os aspectos — que, há mais de dois anos, sua única filha, a jornalista capixaba Daniela Ramos Ribeiro Proença, tenta resolver na justiça, através da expedição de uma certidão de morte presumida, que ateste que seu pai está morto há 45 anos.

Continua após a publicidade

"É preciso colocar um ponto final na história do meu pai, e dar descanso para a sua alma", diz Daniela, que tinha apenas 3 anos de idade quando Zequinha saiu para pescar naquele sábado de outubro de 1979, e nunca mais voltou.

Enquanto isso não acontecer, fica um vazio na história da sua vida

Usa jornais como prova da morte do pai

Em outubro do ano passado, após reunir cópias de reportagens da época publicadas pelo jornal A Gazeta, de Vitória, Daniela conseguiu um parecer favorável do Ministério Público para a expedição da certidão de morte presumida, documento que substitui a certidão de óbito, quando não existe o corpo da vítima.

Imagem
Imagem: Reprodução

Por uma coincidência do destino — "ou não", diz Daniela —, a decisão do Ministério Público ocorreu na mesma data (6 de outubro) do desaparecimento de Zequinha — só que 44 anos depois.

Continua após a publicidade

Mas o juiz que está julgando o caso não se deu por satisfeito apenas com o parecer do Ministério Público e os documentos apresentados por Daniela e solicitou um "chamamento público", uma espécie de convocação aberta para que a pessoa em questão apareça e se manifeste.

"Mas como meu pai pode aparecer, se ele está morto há 45 anos?", diz Daniela, que espera que este seja o último ato legal antes de finalmente conseguir comprovar a morte do pai, de quem só possui um único retrato junto com a filha.

Imagem
Imagem: Reprodução

Só quando a morte dele foi reconhecida pela justiça vou sentir que cumpri o meu dever. Preciso honrar o meu pai, colocando um ponto final na sua história. Até lá, fica um sentimento de vida inacabada

A culpa foi da família

O que causou todo esse embaraço foi o fato de a família do pai de Daniela ter se recusado a aceitar a sua morte, na época do desaparecimento de Zequinha no mar.

Continua após a publicidade

Ao que tudo indica, o barco no qual o trio estava foi atingido por uma tempestade e virou, lançando seus ocupantes no mar — menos o filho do juiz, que, muito provavelmente, por conta desse risco, fora amarrado ao barco pelo próprio pai.

"Como o meu pai era um ótimo nadador, a família passou a alimentar esperanças de que ele tivesse se salvado, já que nunca apareceu o seu corpo".

Achavam que ele poderia ter sido resgatado por algum navio saindo do porto de Vitória e levado para longe, ou nadado até alguma praia, mas perdido a memória

"Cresci ouvindo isso, e, para minha surpresa, ouvi de novo na semana passada, quando voltei a conversar com alguns parentes distantes. Tem gente na família que ainda acredita que meu pai está vivo, o que contraria o bom senso", diz Daniela.

Telefonema aumentou as dúvidas

Contribuiu também para a crença da família um fato que aconteceu tempos depois do desaparecimento do pescador.

Continua após a publicidade

Em um telefonema a cobrar para a casa da mãe de Zequinha, a pessoa do outro lado da linha se identificou como sendo "José Carlos", ao pedir autorização para o pagamento da ligação.

Como também sempre chamara o filho de "Zequinha", a mãe do pescador nem prestou atenção ao nome dito e desligou — para em seguida se arrepender, pelo resto da vida.

"Tudo indica que foi apenas uma coincidência ou trote, como era muito comum na época", diz Daniela.

"Mas isso fez a família acreditar ainda mais que meu pai estivesse vivo. Daí, ninguém quis oficializar a sua morte, como agora estou tentando fazer", conta a jornalista, que também só decidiu ir atrás disso quando, ao se casar, quatro anos atrás, precisou apresentar certidões dos pais ao cartório.

"Em vez da certidão de óbito do meu pai, tive que apresentar a de nascimento, e aquilo me incomodou muito, porque ele não estava mais vivo. Foi quando senti que tinha que fazer algo em favor da sua memória", conta Daniela.

Dignidade e paz

"Quero dar dignidade à sua morte, e fazer uma cerimônia religiosa, para que sua alma descanse em paz", diz Daniela, explicando a razão da sua cruzada pelo reconhecimento legal da morte do pai, quase meio século atrás.

Continua após a publicidade

Minha mãe morreu em 2013, lamentando que nunca teve uma sepultura para chorar pelo meu pai. Isso eu sei que não irá mudar. Mas, com o reconhecimento da sua morte, acho que o espírito do pai, ao menos, terá mais paz

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes