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Professor faz réplica de barco da Guerra dos Farrapos para viagem histórica
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Se tudo der certo, na semana que vem o professor gaúcho Antonio Carlos Rodrigues, de 58 anos, começará a realizar um sonho: colocar na água um barco que ele vem construindo, a duras penas, há cinco anos.
Mas não se trata de um barco qualquer, muito menos feito para o seu uso pessoal, em passeios pelos rios e lagoas da região de Camaquã, no sul do Rio Grande do Sul, onde ele atualmente mora.
O barco em questão é uma réplica fiel de um barco histórico: o "lanchão", como era chamado na época, Seival, usado pelo revolucionário italiano radicado no Brasil durante parte da primeira metade do século 19, Giuseppe Garibaldi, que se tornou um dos membros mais atuantes da Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha, levante que buscava a separação do império então reinante no país - um dos eventos mais marcantes da história do Rio Grande do Sul.
"O Seival foi um barco emblemático da Guerra dos Farrapos, um símbolo do esforço que Garibaldi e seus seguidores empenharam naquele conflito", diz o professor-construtor gaúcho, que, ao contrário do que se possa imaginar, leciona educação física e não história.
E que já gastou perto de R$ 600 mil para construir a réplica do famoso barco.
Ajuda veio até da Itália
O dinheiro veio do próprio bolso, da ajuda de amigos e das arrecadações, com jantares e eventos beneficentes, de uma entidade que ele criou justamente para construir a embarcação: a Asas - Associação Sócio-Ambiental Amigos do Seival — além da colaboração da Associação Garibaldina de Roma, na Itália, que decidiu ajudar o professor quando soube dos seus planos de construir uma réplica do barco usado por Giuseppe Garibaldi, um dos responsáveis pela unificação da Itália, e considerado "um herói de dois mundos", por suas atuações tanto na Europa quanto na América do Sul.
"Mesmo assim, faltou dinheiro e ainda temos dois empréstimos para pagar no banco", diz o resiliente professor, que se apaixonou tanto pela ideia de construir uma réplica da lendária embarcação usada por Garibaldi que, anos atrás, decidiu se mudar com a família de Passo Fundo, onde vivia, para a pequena Camaquã, porque foi ali que o barco original foi construído.
Queríamos que a réplica fosse a mais fidedigna possível e isso passava por construí-la no mesmo local do barco original de Garibaldi", explica o professor, que, para isso, montou um estaleiro improvisado em um galpão na antiga sede do Corpo de Bombeiros da cidade.
A saga de Garibaldi
Na região da atual Camaquã, onde o barco foi apresentado à população da cidade na semana passada debaixo de muita festa, viveu a irmã do líder da Guerra dos Farrapos, Bento Gonçalves, de quem Garibaldi se tornou amigo e por ele foi nomeado "comandante da Marinha Farroupilha" - embora isso, na prática, se resumisse a liderar uma frota de apenas dois pequenos barcos de madeira, contra a poderosa esquadra do Império brasileiro, que tentava sufocar o movimento separatista.
O Seival era um dos dois barcos de Garibaldi.
Ataque-surpresa
O outro barco, o também lanchão Farroupilha, igualmente construído na cidade na mesma época, afundou antes de atingir o objetivo traçado por Garibaldi: surpreender as tropas imperialistas invadindo o porto de Laguna, no atual estado de Santa Catarina, não pelo mar, como seria de se esperar, mas sim pelas lagoas da parte de trás da cidade - um fato igualmente marcante na história da Guerra dos Farrapos.
A estratégia deu certo. E Garibaldi conseguiu tomar o porto e a cidade para os revolucionários.
Barcos arrastados pela terra
Mas isso exigiu um esforço hercúleo, que incluiu arrastar os dois pesados barcos por quilômetros a fio em terra firme, até atingir o mar, a partir de Camaquã.
Foi o que tornou o Seival, único barco que resistiu àquela dura empreitada comandada por Garibaldi, um barco ainda mais emblemático.
Mas nem assim ele venceu o descaso, anos depois.
Uma foto e mais nada
O Seival original se perdeu na história, vítima do abandono, de um princípio de incêndio e de um encalhe em uma das praias de Laguna, mais de meio século depois da incursão de Garibaldi, quando era usado como simples barco de transporte de carga.
Foi a partir de uma simples foto feita do Seival naquela época, em 1906, que o professor Rodrigues conseguiu nortear a construção da sua réplica.
"Não havia nenhum registro do barco, medidas nem nada. Só aquela foto. Então, um modelista naval de Laguna, o Lauro Pereira, me ajudou a traçar as medidas aproximadas e dar forma ao barco. Depois, foi preciso arregaçar as mangas e, na medida que eu conseguia algum dinheiro, ir construindo o barco, aos poucos. Demorou, mas ficou pronto. Mas isso não quer dizer que o projeto tenha terminado. Na verdade, agora é que ele vai começar de fato", diz o abnegado professor, que tem planos bem ambiciosos para o barco que construiu com as próprias mãos.
Busca por doações de objetos
A ideia é usar a réplica do barco como uma espécie de museu flutuante itinerante sobre a Revolução Farroupilha (razão pela qual o professor Rodrigues agora busca doações de peças da época - já conseguiu uma bala de canhão, uma luneta, uma bandeira e uma âncora), e com ele reconstituir a histórica viagem de Garibaldi, até Laguna - com exceção daquela insana travessia por terra firme, puxada por carros de boi.
O verdadeiro objetivo
"Nos trechos onde não houver água, o barco seguirá de carreta, porque, mesmo nos dias de hoje, é inviável fazer o que Garibaldi fez, quase dois séculos atrás", diz o professor, que, no entanto, tem outro objetivo neste projeto, além do aspecto histórico: alertar as pessoas para as questões do meio ambiente.
"O barco servirá para chamar a atenção para a questão ambiental dos rios e lagoas por onde ele passará. Este é o principal objetivo do projeto. Foi por isso que construí a réplica", diz Rodrigues.
Se Garibaldi vivesse nos dias de hoje, ele certamente lutaria pelo meio ambiente, porque era um visionário", garante o professor.
Já havia feito outros barcos
Não é a primeira vez que o professor Rodrigues usa barcos - e sua habilidade para construí-los - como ferramentas pedagógicas para defender o meio ambiente.
Oito anos atrás, com ajuda de alunos das escolas públicas de Passo Fundo, ele construiu pequenos barcos feitos apenas com material reciclados e com eles navegou até Montevidéu, no Uruguai.
O objetivo era alertar para a poluição dos rios da região, o que também pretendemos fazer com a réplica do Seival, só que, agora, em maior escala", diz.
Rumo à Laguna
Se não houver nenhum contratempo na instalação de um motor na réplica do Seival (equipamento que o barco original obviamente não tinha, mas hoje necessário por questões de segurança), Rodrigues pretende colocar a sua embarcação, de 15 metros de comprimento e 15 toneladas de peso, pela primeira vez na água na semana que vem.
E, se não surgir nenhum imprevisto nas muitas escalas do longo percurso histórico que pretende refazer com o barco, chegar à Laguna em julho, mês em que a cidade sempre comemora o feito de Garibaldi e a consequente criação da República Juliana, instalada por ele na região - que, no entanto, durou apenas seis meses, até ser engolida pelos exércitos do Império.
Terra de Anita Garibaldi
A conquista de Laguna rendeu a Garibaldi, além de um respeito ainda maior, o grande amor de sua vida: a moradora Ana Maria de Jesus Ribeiro, eternizada como Anita Garibaldi (e personagem protagonista da série de sucesso A casa das sete mulheres), dali em diante sua destemida companheira nas batalhas.
Cidade dos golfinhos
Até hoje, Anita e Garibaldi (ela homenageada com um museu na cidade, onde está um dos mastros do Seival, única peça que restou do barco original), são uma espécie de quase sinônimo de Laguna - é impossível falar de um sem lembrar o outro.
Mais popular do que o histórico casal na cidade só mesmo outros famosos "moradores" de Laguna: os golfinhos pescadores, lá chamados de "botos", que interagem diariamente com os pescadores, ajudando-os no cerco aos cardumes de peixes no canal que banha a cidade, um comportamento natural daqueles animais e único local do país onde isso acontece - clique aqui para saber como o fenômeno dos golfinhos pescadores de Laguna acontece.
A história de Laguna é riquíssima", diz o abnegado professor Rodrigues, que espera contribuir ainda mais para isso com a réplica do barco que deu origem a boa parte da fama da cidade.
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