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Reportagem

Grécia quer transformar vítimas em responsáveis por naufrágio que matou 500

Em 14 de junho do ano passado, um decrépito barco de pesca abarrotado com centenas de imigrantes ilegais (600 ou mais), virou e afundou a cerca de 80 quilômetros da costa da Grécia, gerando um até hoje não sabido número de mortes — possivelmente, mais de 500, muitas delas, crianças.

Foi uma das piores tragédias já geradas pelo implacável êxodo de imigrantes ilegais africanos rumo à Europa, que já dura mais de uma década.

Na ocasião, apenas 104 pessoas e 82 corpos foram resgatados pelo barco da Guarda Costeira grega que abordou o falso pesqueiro, então à deriva, depois que seu motor parou de funcionar, no meio do mar Jônico.

Mas, de acordo com boa parte dos sobreviventes da tragédia, foi a própria embarcação da Guarda Costeira que causou o afundamento do barco dos imigrantes, ao rebocá-lo de forma inadequada.

As autoridades gregas, no entanto, sempre negaram isso, alegando que a sua Guarda Costeira fora apenas ajudar os imigrantes, que estavam à deriva, em um barco danificado.

Mas a oferta de ajuda teria sido recusada pelos próprios imigrantes, possivelmente porque sabiam que seriam levados de volta para a costa da Líbia, de onde haviam partido, cinco dias antes.

Acusaram os próprios passageiros

Na ocasião, para reforçar sua tese de não envolvimento direto na tragédia, as autoridades gregas tomaram uma decisão, no mínimo, controversa: acusaram nove ocupantes do próprio barco - todos jovens egípcios que tentavam chegar à Europa para tentar uma nova vida - de serem os responsáveis por aquele transporte ilegal de pessoas, embora, ao que tudo indicasse, eles fossem simples passageiros — ou vítimas, já que haviam pago à traficantes de pessoas para embarcar naquela fatídica viagem.

Na acusação, a Guarda Costeira grega alegou que aqueles egípcios foram vistos ordenando que as pessoas, em pânico, se sentassem no convés, quando o barco começou a inclinar demais no mar.

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Rebocados de forma inadequada

Mas os nove jovens — que, desde então, estão em prisão preventiva em uma penitenciária em Avlona, nos arredores de Atenas — contestam enfaticamente a acusação de serem responsáveis pelo barco, alegando que estavam apenas acalmando as pessoas, para que o pesqueiro não perdesse estabilidade e virasse no mar, como acabou acontecendo.

E isso, segundo eles, só aconteceu porque o barco dos imigrantes estava sendo rebocado de forma inapropriada pela embarcação grega, informação confirmada por outros sobreviventes.

De acordo com parte dos que sobreviveram à tragédia, após amarrar um cabo no barco superlotado, a embarcação grega começou a rebocá-lo (possivelmente, para além do limites do mar territorial da Grécia, hábito comum nesses casos), mas o movimento teria feito com que o casco do pesqueiro virasse de ponta cabeça no mar, matando estimadas cinco centenas de egípcios, sírios, paquistaneses, afegãos e palestinos — o número exato de vítimas jamais foi sabido, pois nunca também se soube quantas pessoas havia a bordo.

Bodes expiatórios da tragédia

Após terem sido resgatados no mar, os nove egípcios — ao que tudo indica, agora transformados em bodes expiatórios da tragédia —, foram interrogados pela Polícia grega, e, com a ajuda de um tradutor não muito confiável, forçados a assinar papéis escritos em grego, cujo conteúdo desconheciam.

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"Quem se recusou a fazer isso, apanhou e acabou assinando", contou um deles, recentemente, à rede noticiosa Al Jazeera.

"Não sei por que estou preso", disse outro detido.

Ao que tudo indica, trata-se de mais um caso de vítimas que viram réus, a fim de acobertar os verdadeiros culpados - que poucos duvidam que sejam justamente aqueles que deveriam tê-los salvo no mar.
Investigação privada confirmou suspeita

Um mês depois do naufrágio do barco, uma investigação privada, conduzida por órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, lançou sérias dúvidas sobre os relatórios da Guarda Costeira Grega, após entrevistar alguns sobreviventes - que confirmaram que o barco estava sendo rebocado quando virou de cabeça para baixo na água.

Já as autoridades gregas se defenderam, dizendo que os dois barcos estavam apenas atados entre si, por questão de segurança, já que o pesqueiro estava sem motor e à deriva.

"Sim, o motor do barco havia quebrado, mas ele flutuava. Foi a Guarda Costeira que causou o naufrágio, ao rebocá-lo", disse um dos sobreviventes aos investigadores privados, mesma informação que os egípcios acusados deram à Polícia grega — aparentemente, em vão.

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Podem pegar décadas de prisão

Agora, eles estão sendo acusados de fazer parte de uma organização criminosa que visa facilitar a entrada ilegal de imigrantes na Grécia, e de causar o naufrágio do próprio barco no qual estavam - algo que praticamente ninguém acredita.

A data do julgamento ainda não foi marcada. Mas, se forem considerados culpados, os jovens egípcios poderão enfrentar décadas de prisão por aquela tragédia, que pode ter matado mais de 500 pessoas - e da qual só escaparam com vida por pouco.

No passado, eram os cubanos que fugiam

Em tempos recentes, a migração em massa para a Europa de africanos e habitantes de países pobres, como Paquistão e Afeganistão, só encontra paralelo em outro frenético movimento do gênero ocorrido nos anos de 1990, quando milhares de cubanos decidiram fugir para os Estados Unidos a bordo de qualquer coisa que flutuasse no mar: de boias improvisadas com câmeras de pneus de automóveis a caçambas de lixo adaptadas para virarem "barcos" — clique aqui para ver alguns casos daquela época, como um insólito caminhão da década de 1950 que foi transformado em veículo anfíbio.

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Imagem: Reprodução USCG
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A diferença entre os dois movimentos é que, na época, os cubanos que eram detidos pela Guarda Costeira americana eram apenas enviados de volta à Cuba.

Já os imigrantes africanos que, todos os dias, tentam chegar pelo mar à Europa, quando sobrevivem, podem acabar presos.

Como aqueles nove egípcios, agora, à espera de julgamento.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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