Turno e returno, sem final

Brasileirão chega à 20ª edição dos pontos corridos, ao contrário do desejo inicial da Globo

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Lucas Figueiredo/CBF

A Globo, inicialmente, não queria.

Mas o jogo das pedaladas de Robinho — e aquela campanha do Santos de 2002, como um todo — foi o fim de um ciclo. Nada de finais, nada de troféus para quem ficasse em oitavo na primeira fase, nada de imprevisibilidade de jogos no calendário. Quando a bola rolar no Maracanã, neste sábado, às 16h30, para o confronto entre Fluminense e Santos, será dado início à 20ª edição do Brasileirão de pontos corridos.

Há 20 anos, a mudança aprovada pelos clubes foi ao encontro do que queria a CBF. Juvenal Juvêncio, então presidente do São Paulo — que tinha se classificado em primeiro na primeira fase do ano anterior e perdido logo nas quartas de final para o Santos — dizia que o time que tivesse melhor planejamento seria o campeão. Por outro lado, Eurico Miranda, do Vasco, profetizava "um suicídio para o futebol brasileiro" e demonstrava preocupação com a Globo.

Nas duas décadas subsequentes, o futebol brasileiro não morreu. Não houve espaço mais para zebras e, apesar do trilho europeu no formato, o Brasileirão ainda não faz frente às principais ligas do mundo, em termos de valor e de calendário —lembrando que os jogos não param em data Fifa e vira e mexe sofre como desfalques pelas seleções.

Mas e o que vem por aí dentro e fora de campo?

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Lucas Figueiredo/CBF

A alteração do Brasileirão, em 2002, era uma pauta muito forte na mente do então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, mesmo com a contrariedade da Globo, detentora dos direitos de transmissão.

"Naquele momento, a Globo estava satisfeita com o formato antigo. Mas, ao longo do tempo, os pontos corridos se mostraram muito interessantes, principalmente pelo desenvolvimento do pay-per-view, que foi o produto que mais cresceu de lá para cá", cita Marcelo Campos Pinto, ex-executivo da emissora, por anos responsável pela negociação com os clubes dos contratos de direitos e transmissão e que hoje é um dos sócios da Sportsview.

Para os clubes, o pay-per-view chegou a bater pelo menos R$ 550 milhões de arrecadação por temporada. O produto foi lançado pela Globo em 1997, mas foi justamente no ano em que a fórmula do Brasileirão mudou que, na visão de Campos Pinto, o produto se consolidou.

"Em 1997, quando se negociou isso, não se sabia o potencial de assinantes. Sempre se negociava um valor mínimo garantido. A partir de 2003, esse valor mínimo veio sendo superado", explicou.

Na CBF, o trabalho foi de manutenção da fórmula ao longo dos anos, ainda que não tenha ocorrido até hoje uma solução definitiva para os problemas do calendário nacional. Na última década, já sem Teixeira no poder, o investimento na Copa do Brasil ajudou a reforçar a necessidade de cultivo da fórmula dos pontos corridos, sem que se voltasse a ter uma réplica do formato mata-mata.

A gente está bem servido na Copa do Brasil. Quando entram os clubes da Libertadores, na terceira fase, que foi a mudança que fizemos ano passado, é inegável que é quase um brasileiro de mata-mata. Então, tem para os dois gostos. Tem torneio para os grandes clubes de mata-mata e tem os pontos corridos. Um premia o momento, a torcida, o fator casa, características do mata-mata. E o outro vai pela regularidade, o plantel. Tem para os dois gostos.

Manoel Flores, Diretor de competições da CBF

Alexandre Vidal/Flamengo

Foco na média de público

"Vai começar o campeonato mais importante das Américas", anuncia o diretor de competições da CBF, sobre a Série A do Brasileirão.

Mas o que o faz dizer isso?

"Pela capacidade de geração de receita, visibilidade e relevância do nosso futebol. Se olhar o valor da competição como um todo, é uma das maiores do mundo. A capacidade de geração de receita. O principal indicador de performance de uma competição é justamente o público, atingir quem vai ao estádio. Fazer com que o torcedor se desloque, saia de casa, não há indicador melhor", argumenta Manoel Flores.

Sobre o dinheiro, levantamento feito pela EY apontou que em 2019 a receita dos principais clubes brasileiros atingiu R$ 6,1 bilhão. Houve uma queda em 2020 por causa da pandemia, deixando esse número em R$ 5,3 bilhões. Em 2021, com as ressalvas feitas pelos ajustes do calendário, só o Flamengo bateu a marca de R$ 1 bilhão. O Palmeiras se aproximou disso também, reforçando que, ao menos na elite, há um caminho de crescimento. A CBF também consegue seu quinhão com a competição ao vender, por exemplo, os naming rights da Série A ao Assaí.

Em relação ao público, a retomada do ritmo de crescimento da média de torcedores nos estádios é a grande meta da CBF em 2022. As arenas ficaram completamente fechadas em 2020 e só na reta final de 2021, com restrições, que voltaram a ser preenchidas. Isso interrompeu uma sequência de crescimento que teve como auge a edição de 2019: no ano em que o Flamengo foi campeão, a média de público da Série A ficou em 21.237 torcedores/jogo. Foi a melhor marca desde 1983.

"Em 2019, a gente bateu o recorde. Esperamos superar essa marca. A gente conta com grandes estádios, um campeonato forte, com grandes equipes, ídolos. O torcedor indo e voltando com segurança. A gente torce para manter essa crescente", completou Manoel Flores.

Editoria de arte Editoria de arte

O campeonato continua imprevisível?

A fórmula dos pontos corridos tem como premissa beneficiar quem é o mais consistente ao longo do campeonato como um todo. Nos pontos corridos, não se ganha um título com somente um dia de inspiração e, ao mesmo tempo, não se paga o preço por uma jornada de apagão. A matemática é simples: fica com a taça quem consegue, ao longo de quase oito meses, somar mais pontos.

O efeito do formato — que ainda teve reduções no número de participantes, chegando, em 2006, aos 20 atuais — foi uma concentração maior de conquistas entre os chamados grandes. Especificamente entre os que viveram suas melhores fases financeiras nesse período. Em novembro, veremos o resultado dessa e outras brigas ao longo da tabela.

De 2003 para cá, o Brasileirão teve oito campeões diferentes em 19 edições — Cruzeiro, Santos, Corinthians, São Paulo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras e Atlético-MG. Nas 19 edições anteriores a 2003, com formato mata-mata, foram 13 campeões diferentes (12, se considerar a Copa União como título da Série A, vencido pelo Flamengo): Santos, Athletico, Vasco, Corinthians, Grêmio, Botafogo, Palmeiras, Flamengo, São Paulo, Bahia, Coritiba, Sport e Fluminense.

Na outra ponta, muito time robusto visitou a Série B, como Botafogo, Palmeiras, Atlético-MG, Grêmio, Corinthians, Cruzeiro e Vasco. Tem gente que caiu mais de uma vez, outros que nem conseguiram subir de volta ainda.

Na Série A que se inicia, o favoritismo recai sobre quem tem poderio financeiro para manter um elenco estrelado. Por isso, na primeira prateleira estão o atual campeão Atlético-MG, o Palmeiras — bicampeão da Libertadores —, e um Flamengo que tem cofres cheios, mas passa por uma instabilidade técnica, de ambiente e política.

O grande atrativo do nosso campeonato sempre foi a imprevisibilidade. Ter um número grande de clubes que podem disputar título. A gente não vê isso mudando. Obviamente tem alguns momentos, mas há uma troca muito grande. Em 2020, teve Internacional e São Paulo disputando. Ano passado, teve o Atlético-MG. O campeonato se mantém imprevisível. Hoje, a gente tem essa foto [Atlético-MG, Palmeiras e Flamengo]. A gente vê os clubes começando a se fortalecer, coisas recentes da SAF, com clubes se estruturando. A gente acredita que a médio prazo isso vai ser benéfico.

Manoel Flores, Diretor de competições da CBF

As 'finais' dos pontos corridos

Thiago Ribeiro/AGIF

Flamengo 2 x 1 Internacional - Brasileirão 2020

A partida pela 37ª rodada terminou com vitória rubro-negra, resultado que colocou o Flamengo na liderança, ultrapassando o próprio Inter, faltando um jogo para terminar. No Maracanã, o Colorado abriu o placar com Edenílson, mas o Fla empatou com Arrascaeta e virou, já no segundo tempo, com Gabigol. Antes do segundo gol, o Inter ficou com um jogador a menos por causa da expulsão de Rodinei - um torcedor pagou a multa de R$ 1 milhão ao Fla para que o lateral, que estava emprestado, pudesse entrar em campo.

Keiny Andrade/Folha Imagem

Corinthians 1 x 1 Internacional - Brasileirão 2005

Faltavam três rodadas para a conclusão do campeonato quando Corinthians e Internacional se enfrentaram no Pacaembu. O empate por 1 a 1 manteve a distância de três pontos entre os dois -- diferença que resistiu até o fim e o time paulista ficou com o título. O jogo foi polêmico por causa da decisão do árbitro Márcio Rezende de Freitas de não dar um pênalti do goleiro Fábio Costa no meia Tinga e, de quebra, ainda expulsar, com um segundo amarelo, o jogador colorado por considerar uma simulação.

Lucas Figueiredo/CBF

Retoques estéticos

Parte da preocupação da CBF nos últimos anos tem a ver com a parte estética do Brasileirão. Há elementos que impactam na envelopagem do produto, como iluminação e protocolo, e alguns que, por tabela, afetam diretamente o jogo, como os gramados.

A disseminação das grandes arenas após a Copa do Mundo de 2014 ajudou no processo. Mas mesmo o Maracanã, por exemplo, sempre deu dor de cabeça por causa do terreno de jogo. No fim do ano passado, o estádio passou por uma reforma profunda, aderindo ao tipo híbrido, que mescla grama natural com fibras sintéticas.

No pré-jogo, o ritual passou a ter entrada em conjunto dos times em campo, posicionamento em frente a um pórtico para exibição da marca e entrevistas à beira do campo apenas com as detentoras de direitos, usando backdrop.

"Ao longo dos últimos anos, é inegável o crescimento no cuidado do produto. A grande questão era a poluição visual no entorno do gramado. Foi uma questão que a gente conseguiu equacionar. Passa por quesitos operacionais. Entrada em campo organizada, protocolo definido, propriedades comerciais que nascem com isso, como os pórticos e totens. Parece pequeno, mas é algo que antes parecia impensável. Isso é uma questão operacional primordial para qualquer torneio", argumenta Manoel Flores.

Essa "maquiagem" do produto veio acompanhada do interesse de comercialização do Brasileirão no exterior. A CBF e os clubes firmaram um contrato com a 1190 Sports para negociar os direitos de transmissão em outros países - o acordo mais recente foi com o OneFootball. Desta forma, o Brasileirão chega a mais de 100 países.

O processo de licitação, no entanto, foi problemático, com a CBF cancelando a concorrência por duas vezes. Mas o contrato que vai até 2023 foi assinado com a parceira atual, a Global Sports Rights Management (GSRM), que se fundiu à 1190.

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O campeonato de pontos corridos já é uma realidade no Brasil. Ficou provado que o nível da competição é alto. Tudo com bastante equilíbrio, por isso é errado dizer que essa fórmula não tem emoção, como no mata-mata. Temos os problemas de calendário e longas viagens. Mas temos que lidar com isso e entender a logística da competição.

Marcelo Paz, Presidente do Fortaleza

É uma fórmula excelente. Você tem várias disputas> pela permanência, por vagas nas competições sul-americanas, pelas cotas, pelo título. O brasileiro entendeu ele já há alguns anos. O campeonato é muito emocionante do começo até o fim. É uma fórmula que funciona perfeitamente, tanto é que as grandes ligas são todas desse jeito.

Cristiano Dresch, Vice-presidente do Cuiabá

Vivian Koblinsky/XP

Vai dar liga?

Dependendo da capacidade de articulação dos clubes, a organização do Brasileirão pode deixar de ser da CBF em um futuro não tão distante. Mas o obstáculo disso tudo, pelos exemplos recentes, é justamente o começo da frase anterior.

Os dirigentes já discutiram sobre vários assuntos no processo atual de desenvolvimento da liga. O assunto esfriou depois de uma discussão ríspida entre os presidentes do Athletico, Mario Celso Petraglia, e Bahia, Guilherme Bellintani. Mas foi retomado após a aproximação de empresas interessadas em aportar investimento em troca dos direitos da liga.

A lista de reuniões teve até um encontro com Javier Tebas, presidente de La Liga, que organiza o Campeonato Espanhol, em um movimento conduzido pela XP Investimentos e a Alvarez & Marsal. Um grupo de clubes já assinou com a Codajas Sports Kapital e o BTG para desenvolver a Liga. À mesa, também chegou uma oferta da Live Mode com a 1190.

Os clubes se uniram no contato com a CBF, para que o presidente Ednaldo Rodrigues apoiasse a instalação da liga. Conseguiram o compromisso dele, em uma mudança de posicionamento da CBF que pode ser considerada histórica.

Só que a união dos clubes ainda não é completa. Um assunto recente que causou divisão diz respeito à comercialização da publicidade estática do Brasileirão. O projeto de liga vai sobreviver em meio a isso?

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