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Em vez de prejudicar, pandemia ajudou atletas a baterem marcas em Tóquio

Karsten Warholm, da Noruega, atônito com seu recorde mundial dos 400m com barreiras - David Ramos/Getty Images
Karsten Warholm, da Noruega, atônito com seu recorde mundial dos 400m com barreiras Imagem: David Ramos/Getty Images

Denise Mirás

Colaboração para o UOL, de São Paulo

05/08/2021 08h40

"Natação, ciclismo, atletismo... No remo, vi muitos recordes olímpicos sendo batidos, no ciclismo caíram recordes mundiais em prova atrás de prova", afirma Raoni Machado, bacharel em Esporte pela USP e professor da Universidade Federal de Lavras-MG. A constatação nas madrugadas é a base para um artigo científico onde serão utilizados todos esses dados armazenados pelo Comitê Organizador das Olimpíadas de Tóquio-2020: a pandemia acabou beneficiando atletas de alto nível, por causa dos períodos de treinos interrompidos no último ano e meio.

Esperava-se o contrário. Que o nível técnico de Tóquio-2020 fosse fraco. Mas recordes olímpicos e mundiais vêm sendo batidos e, mais abrangente que isso, muitos recordes continentais e nacionais, fora o sem-número de melhores marcas pessoais conseguidas. Até para espanto dos próprios competidores.

Raoni observa que, aparentemente, são os atletas das provas de potência que mais se beneficiaram. "De potência são as que reúnem força e velocidade juntas. Não só força, nem só velocidade, nem só resistência."

"Qual o princípio do treinamento? É o principio da supercompensação. Geramos uma sobrecarga, que estressa o corpo. Este, para se proteger, vai se adaptando, mas ainda deixa uma 'folga' no tanto que aguenta. É aí que o treinamento atua. Novamente o corpo é sobrecarregado, o que gera uma nova compensação. E assim, aos poucos, vai ficando melhor", explica o professor.

"A questão é calcular qual o estresse a que se vai submeter esse corpo. Qual a carga de treinamento que suporta, para ainda ter essa 'folga' - a compensação - antes do próximo passo. É como se fosse uma onda. Um novo estimulo no ponto ideal da recuperação física, no ponto alto da onda, que leva a uma nova compensação. Que é maior do que aquela que foi gerada anteriormente, chamada de supercompensação", observa Raoni.

"Por outro lado, se a carga exceder essa 'folga' que o corpo se dá, e não houver tempo suficiente para que se recupere e se adapte - ou seja, ainda na parte baixa da onda -, aparecem as lesões."

Yulimar Rojas, da Venezuela, recorde mundial do triplo - Christian Petersen/Getty Images - Christian Petersen/Getty Images
Yulimar Rojas, da Venezuela, recordista mundial no salto triplo de Tóquio-2020
Imagem: Christian Petersen/Getty Images

Como o esporte de alto nível trabalha com ciclos longos de treinamento, que também se dividem em períodos mais curtos, pode acontecer que treinos e treinos seguidos levem o corpo ao limite. De maneira que se adapte e não haja mais a "folga" para compensação, em relação ao estresse dado. "Por isso, se não houver pausa para o corpo 'esquecer' o estresse e voltar a reagir e se adaptar, dificilmente haverá melhora na performance, podendo até mesmo ter uma queda nos resultados."

Estudo de 1950 virou modelo

Essa é a hipótese de Raoni Machado. E sua base vem de um dos primeiros autores a estudar a importância da periodização do treinamento, na União Soviética: Lev Pavilovch Matveev. Ainda na década de 1950, o soviético previa a divisão do ciclo de treino em períodos: preparatório, competitivo e transitório. Um modelo que se tornou clássico. "Matveev já dizia que em um período de treinamento a longo prazo existia a necessidade de um período de transição um pouco maior, para que as possibilidades de adaptação fossem reestabelecidas", diz.

"Aplicado nos dias de hoje, nesse modelo a transição é feita em dias, ou no máximo semanas, porque a exigência do esporte profissional não permite um tempo maior."

Elaine Thompson-Jerah, jamaicana e recordista olimpica dos 100m - Jean Catuffe/Getty Images - Jean Catuffe/Getty Images
Elaine Thompson-Herah, da Jamaica, no recorde olímpico dos 100m em Tóquio-2020
Imagem: Jean Catuffe/Getty Images

Com a pandemia e interrupções de treinos, continua Raoni, os corpos dos atletas tiveram tempo de "lembrar" que ficam estressados com sobrecargas e têm de se adaptar. Assim, com as pausas forçadas, conseguiram mais eficiência nos treinamentos, a ponto de ir melhorando a performance. Chegaram a Tóquio-2020 prontos para os muitos recordes que estão sendo batidos.

"Já se prenunciava isso, em competições antes dos Jogos, como na canoagem. Agora, estamos vendo quantas marcas pessoais quebradas. Só não temos os números reais ainda", observa o professor. "Temos resultados na hora, prova por prova, com vários tipos de recordes, que vão de melhores marcas individuais às mundiais. Mas teremos de computar esporte por esporte, país por país. E vamos fazer isso, para esses dados serem publicados em forma de artigo científico."

Tecnologia no piso e nos pés

No caso do atletismo, o fabricante da nova pista - e pista também pode ser mais "rápida" - , anuncia que foi projetada consultando atletas a partir de testes com diferentes materiais, como tipos de borracha onde foram incorporados grânulos tridimensionais que absorvem mais os choques e possibilitam retorno de energia como um trampolim, que "devolve" os saltos. Foram reunidos depoimentos de atletas atestando podem sentir esse efeito (que, segundo o fabricante, ajudaria a melhorar performances em até 2% — muito significativo, se recordes vêm por centésimos de segundo).

Se a tecnologia ajuda atletas, também é perceptível o ganho das empresas e do marketing do próprio esporte. Mas também aciona a questão: seria justo chegar a recordes com esse apoio, diante de atletas de edições anteriores que não contavam com ela? As discussões se desdobram sobre o avanço nos calçados para as diferentes provas do atletismo.

Sifan Hassan, da Holanda, dos 1500m e 5000m - BSR Agency/Getty Images - BSR Agency/Getty Images
Sifan Hassan, da Holanda, levou um tombo e ainda venceu semifinal dos 1500m
Imagem: BSR Agency/Getty Images

Espanto dos próprios atletas

A jamaicana Elaine Thompson-Herah apontou, atônita, antes mesmo da linha de chegada, a marca que batia aquela que durou de 33 anos. Elaine fez 10s61 nos 100m, só atrás do recorde mundial de 10s49, de Florence Griffith-Joyner, falecida precocemente aos 39 anos (essa marca, de 10s49, é considerada até hoje 40 vezes mais espantosa que os 9s79 do canadense Ben Johnson, desconsiderados como recorde mundial depois da descoberta do doping).

Em Tóquio-2020 também ficou registrado o assombro do norueguês Karsten Warholm, com seu incrível recorde mundial de 46s70 para os 400m sobre barreiras, e da venezuelana Yulimar Rojas, também recorde mundial mas no salto triplo, com 15m67, que persistia com a ucraniana Inessa Kravets (15m50) há 26 anos. A holandesa Siffan Hassnan registrou um tombo e uma vitória na semifinal dos 1.500m, para vencer, no mesmo dia, os 5.000m (ainda fará a final da prova mais curta nesta sexta-feira, 6).