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OPINIÃO

Presença de pessoas trans nos Jogos Olímpicos: pertencimento e denúncia

 Laurel Hubbard, levantadora de peso da Nova Zelândia - REUTERS/Edgard Garrido
Laurel Hubbard, levantadora de peso da Nova Zelândia Imagem: REUTERS/Edgard Garrido

Leonardo Morjan Britto Peçanha

Especial para o UOL, no Rio

02/08/2021 11h17

Os Jogos Olímpicos de Tóquio são os primeiros com a participação de pessoas trans. É importante ressaltar: essa participação tem sido bastante discutida e a presença trans se deu apenas agora de forma visível. Pessoas trans assumidamente enquanto trans participando efetivamente, só nesta edição.

O maior exemplo disso é Lauren Hubbard, da Nova Zelândia, que competiu hoje no levantamento de peso. Ela é a primeira mulher trans a participar dos Jogos seguindo as diretrizes do Comitê Olímpico Internacional (COI), que em 2015 redefiniu as instruções para a participação de atletas trans em competições esportivas oficiais. Uma lista de exigências rigorosa compõe essas diretrizes: desde um documento de próprio punho dizendo que ela é uma mulher trans, até checagem do nível de testosterona em nanomols (antes 10 e agora inferior a 5) no sangue.

Laurel Hubbard na tentativa de levantar 125kg - REUTERS/Edgard Garrido - REUTERS/Edgard Garrido
Laurel Hubbard na tentativa de levantar 125kg: mesmo sendo sétima do rankin mundial, ela foi a única a não passar para a segunda fase em sua categoria acima de 78kg
Imagem: REUTERS/Edgard Garrido

Essas exigências parecem importantes, mas representam uma preocupação excessiva. Regras assim leem corpos trans como desvios do corpo cisgênero e são, na verdade, cissexismos que querem moldar os corpos trans, principalmente aqueles que passam por reposição hormonal e processos cirúrgicos de modificação corporal, para que eles tenham sua corporeidade minimamente aceita.

Aqui, é esquecido que a reposição hormonal, realizada com acompanhamento médico especializado, ajusta os níveis para que pessoas trans sejam equivalentes a pessoas cisgênero — evidenciando uma reposição hormonal funcional, não meramente estética. Joanna Harper, pesquisadora que também é membro do COI, analisou os efeitos dessa reposição hormonal e constatou que não existe vantagem para mulheres trans no esporte. Seus estudos mostram que a reposição iguala os níveis hormonais de mulheres trans e cis. Foram análises como essa que ajudaram a começar a mudar as diretrizes do COI em relação aos atletas trans.

O que deveria ser um direito de todas as pessoas, a prática de atividades físicas e a participação enquanto atletas em eventos esportivos do alto rendimento, não era possível para atletas trans. A vulnerabilidade social e toda a transfobia que pessoas trans enfrentam impediam isso. A discussão gira na chamada "vantagem biológica", pautada pela memória muscular. E acaba no debate descabido que naturaliza discursos de ódio e não leva em consideração estudos e pesquisas como os de Joanna Harper.

Com isso, os atletas viram alvos. Lauren Hubbard passou por diversos xingamentos nas redes sociais de cunho misógino, cissexista e transfóbico. A maioria dizia não legitimar sua identidade de gênero como mulher mesmo ela seguindo todas as diretrizes para participar dos Jogos na categoria feminina.

A boa notícia é que Lauren não está sozinha nos Jogos. Alana Smith, dos EUA, no skate, e Quinn, do Canadá, no futebol, também entram nessa conta. A atleta de ciclismo Chelsea Wolfe, dos EUA, também estava inscrita como reserva, mas não foi acionada.

Quinn, meio-campo do Canadá - KIM HONG-JI/REUTERS - KIM HONG-JI/REUTERS
Quinn, camisa 5 do Canadá, disputa bola com Yuzuho Shiokoshi, do Japão
Imagem: KIM HONG-JI/REUTERS

Quinn e Smith são pessoas trans não binárias e participaram estrategicamente na categoria feminina, mesma atribuição de gênero que receberam no nascimento. Aparentemente, não fazem reposição hormonal, embora Quinn tenha feito a cirurgia de mamoplastia masculinizadora, conhecida de forma médica de mastectomia bilateral.

Quinn foi a primeira pessoa trans a competir em Tóquio. Elu jogou no dia 21 de julho pela seleção do Canadá contra a do Japão. Foi um marco. Quinn se manifestou nas redes sociais com muito orgulho, falando dessa representatividade, o que foi compartilhado por pessoas que apoiam a causa trans. Smith participou do skate street no dia 25 de julho.

Comentaristas e narradores se esforçaram para tratar Quinn e Smith no gênero correto, usando linguagem neutra —embora algumas vezes escapasse o pronome feminino. Ver a linguagem neutra usada e explicada é positivo para visibilizar a linguagem inclusiva e, mesmo que de forma sucinta, explicar sobre a identidade não binária. Algo assim acontecer em um evento tão grande quanto os Jogos Olímpicos ajuda muito na visibilidade de pessoas trans, sejam não binárias como de demais identidades de gênero.

Alana Smith, atleta não binário do skate street nas Olimpíadas de Tóquio-2020 - TOBY MELVILLE/REUTERS - TOBY MELVILLE/REUTERS
Alana Smith, atleta não binário do skate street nas Olimpíadas de Tóquio-2020
Imagem: TOBY MELVILLE/REUTERS

A população trans, de forma geral, passa por vulnerabilidades sociais específicas e são pouco pensadas políticas públicas efetivas para minimizar esses problemas. Quando existem, o que acontece na prática é uma barreira social que impede seu acesso, causada pela transfobia estrutural existente na sociedade.

Logo, ver a presença de pessoas trans nos Jogos Olímpicos faz pensar que existe uma inclusão acontecendo. Essa participação positiva deve evidenciar também uma denúncia.

Isso pode ter relação com o que o professor de educação física e pesquisador Leonardo Lima conta sobre a maneira como as pessoas trans lidam com a prática esportiva. As barreiras sociais e o não respeito à identidade de gênero faz muitas pessoas terem receio de praticar esporte. Essa dificuldade evidencia uma ausência coletiva de pessoas trans em espaços esportivos. Assim, comemorar a presença de pessoas trans nas Olimpíadas é positivo, mas com contextualização. Apenas agora ela chega de maneira verdadeira e visível em relação a identidades de gênero de pessoas trans. Algo que sempre aconteceu com pessoas cisgênero.

A participação dessas três pessoas trans tem um simbolismo muito importante. Significa que o esporte é também um local em que as pessoas trans vão estar, assim como em todas as esferas da sociedade. A presença de mulheres trans e pessoas não binárias nos Jogos Olímpicos traz a reflexão de que devemos pensar para além das expectativas normativas e de uma leitura social binária atrelada a ideia de homem ou mulher únicas como dita nossa sociedade cisheteronormativa.

O pertencimento também é um elemento importante. A participação de pessoas trans manifesta a possibilidade de outras pessoas estarem nos espaços de alto rendimento nos esportes. Motivando e criando expectativas positivas para outras pessoas trans fazerem o mesmo.

Embora o cistema — sistema social de privilégios cisgênero — ainda lide de maneira muito transfóbica com as pessoas trans em ambientes esportivos e de prática de atividade física, estar nestes lugares é um direito de toda a pessoa enquanto cidadã e não deve ser negado por discriminações e preconceitos. Profissionais e professores de educação física, assim como demais profissionais que estão inseridos nas áreas de esporte e atividade física devem se atualizar e buscar conhecimentos para não naturalizar transfobias. O esporte vai precisar lidar com a presença de pessoas trans em espaços esportivos com ética, respeito e dignidade.

Não iremos retroceder.

Leonardo Morjan Britto Peçanha - Doutorando em Saúde Coletiva (IFF/FIOCRUZ), especialista em Gênero e Sexualidade (IMS/UERJ), professor de Educação Física e coordenador de Políticas LGBTI+ no Feminismo Negro no Esporte.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL