"Que povo barulhento"

Thaíssa Presti, a medalhista olímpica que aprendeu a correr e fazer contas no Japão e se assustou com o Brasil

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Marcus Steinmyer/UOL

É uma história curiosa a de Thaíssa Presti. Ela é professora de educação física, pós-graduada em marketing e formada em administração esportiva. Todos os diplomas são brasileiros. Mas, até hoje, ela recita a tabuada em japonês.

Brasileiríssima, Thaíssa aprendeu a correr numa pista de terra no Japão, a menos de uma hora de Tóquio. E foram essas corridas japonesas que a levaram ao pódio olímpico: em 2008, nos Jogos de Pequim, ela, ao lado de Rosemar Coelho Neto, Lucimar de Moura e Rosângela Santos, conquistou o bronze nos 4x100m livre do atletismo —a medalha só chegou nove anos depois, mas essa é outra história.

O ponto, aqui, é o Japão. E Thaíssa não é nissei, como são chamados os descendentes dos japoneses que imigraram. Mas carrega em seu jeito de ser tudo o que aprendeu por lá. Ela viveu dos dois aos dez anos no Japão porque, em 1987, seu pai foi jogar futebol no Kashiwa Reysol.

Quando ela voltou, demorou a se acostumar com o Brasil: "Eu pensava: que povo mais barulhento".

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Conexão Tóquio

A partir de 23 de julho, olhares brasileiros estarão voltados a Tóquio, onde acontecerão os Jogos Olímpicos de 2020 —adiados para 2021 por causa da pandemia de coronavírus. É uma chance de a maior comunidade japonesa fora do Japão do planeta aumentar um pouquinho a conexão com sua terra natal. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do país asiático, são mais de dois milhões de japoneses ou descendentes vivendo no Brasil.

E a influência japonesa em nosso esporte é forte, como mostra a série Conexão Tóquio, do UOL Esporte. Em cinco capítulos, vamos mostrar como alguns dos grandes nomes do esporte no Brasil têm um pouquinho de japonês em sua história. São relatos de imigração, conhecimento e, às vezes, preconceito, que contam como os japoneses são importantes para nós.

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Discreta, calada e observadora

Seu pai é o ex-ponta-esquerda Zé Sérgio, que tinha brilhado no São Paulo e na seleção de Telê Santana. "Passei toda a minha infância lá. Tenho muito da cultura japonesa. Sou discreta, meio calada, observadora. Aprendi com eles e com meus pais".

As aulas de Educação Física eram dadas em uma pista de terra, oval, e a menina já corria muito. Participava de pequenas competições de revezamento com coleguinhas e já abria e fechava a prova dentro do seu grupo.

"Eu ganhava de toda a turma, inclusive dos meninos. Nos fins de semana, os pais participavam das brincadeiras, das competições. Quando eu ainda pequena, corria junto com meu pai e a gente não perdia uma corrida".

Ali começava a se formar a velocista que iria se consagrar em 2008. "Foi um longo caminho, que começou na cidade de Kashiwa, a uma hora de Tóquio, onde nós morávamos".

Eles são extremamente educados, não cogitam algo que seja fora do correto. Nada que aqui poderia ser arrumado com o jeitinho brasileiro. E eu até admito que em alguns casos existe até um exagero nessa maneira de ser. De agir."

Thaíssa Presti, sobre o período em que morou no Japão

Um professor era torcedor do Kashiwa Reysol e quando meu pai conseguia ingressos, presenteava este professor. Sabe o que ele fazia? Ele me comprava presentes, se sentindo na obrigação de retribuir. Uma vez, me deu um vale para fazer compras na loja de um shopping. Nossa família não aceitou, meus pais ficaram bravos e devolvi o vale. É o que digo do exagero."

Thaíssa Presti

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Os ensinamentos do pai

Thaíssa começou a praticar esportes aos três anos. Nada mais natural na casa de um atleta. Para quem não se lembra, Zé Sérgio era um ponta habilidoso e rápido. Estava entre os melhores do país no fim dos anos 70 e, em 1980, foi titular da seleção de Telê Santana no Mundialito de Montevidéu, ao lado de Zico e Sócrates —e só não foi para a Copa do Mundo de 1982 por conta de contusões.

"Meu pai me contava que apanhou muito no futebol e por isso teve que fazer cirurgias no joelho".

Com sua experiência de jogador de seleção e com sua formação dentro do São Paulo Futebol Clube, Zé Sérgio dava instruções à sua menina: "Nas corridas mais longas, ele me ensinava como dosar o ritmo para não cansar. Minha mãe ficava na torcida, mas ele estava ao lado e me chamava a atenção para que controlasse a respiração. E não permitia que eu me distraísse. Era preciso manter a concentração".

Com as aulas, o talento natural e o pai coruja, Thaíssa começou a se destacar e logo viu que sua prova era de velocidade. "Uma vez, competi pela escola em uma maratoninha — era assim que eles chamavam a corrida — que saía do estádio, dava uma volta pelo quarteirão e retornava ao local da partida. E meu pai ali, firme, filmando, gritando 'vamos Thaíssa'. Desta vez, lembro que cheguei em sexto lugar".

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Japonês na escola, português em casa

Paralelamente ao esporte, a menina ia aprendendo tabuada, a fazer contas pelos métodos japoneses e a ler e escrever. "Era uma escola japonesa mesmo. Quando eu chegava em casa, meus pais tinham a preocupação de falar comigo em português para não perder o treino com o nosso idioma. Mas eu e minha irmã Larissa falávamos em japonês".

"Eu lembro que quando o Brasil ganhou a Copa em 1994, nos Estados Unidos, eu cheguei na classe e os professores e as minhas colegas me esperavam em pé, gritando Brasil, me aplaudindo. Meu pai era visto como um ídolo. E a família também".

Por lá, ela também entendeu outro aspecto da vida no Japão: o machismo. "Nesse aspecto, o Japão é bem atrasado. Lembro que no meu tempo de escola, menina não podia usar calça: era saia, meia-calça e meião", conta, para depois comentar os problemas que a própria organização dos Jogos Olímpicos enfrentou, com renúncia do presidente do comitê organizador. "A gente vê que o machismo ainda domina a sociedade".

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Até hoje ela faz contas em japonês

Passados dez anos, a família voltou ao Brasil. Thaíssa passou por dois processos de adaptação: na escola e nas pistas. "Eu encontrei um pouco de dificuldade na escola porque eu tinha o português básico. Não conhecia gíria, nem palavrão e no começo fiquei confusa e assustada. Eu pensava: que povo mais barulhento".

Depois, Thaissa teve problemas para ler. "Eu não lia na mesma velocidade das outras crianças. E na matemática, como eu resolvia os problemas de outra maneira, de um jeito diferente, os professores me olhavam e queriam entender como eu fazia aquilo. E o meu português não era suficiente para explicar. E até hoje eu tenho gravada em japonês a tabuada para responder. Quando faço a conta, faço em japonês".

Nas pistas a adaptação foi mais fácil. "Comecei competindo pelo Colégio Visconde de Porto Seguro, correndo os 75 metros, sem saída em bloco. Participei de uma prova correndo pela prefeitura de Valinhos, era uma competição mirim e eu ganhei. Nos 800 metros, cheguei em terceiro".

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A medalha olímpica

Competir para valer, mesmo, foi aos 15 anos. Aí a conversa já foi diferente. A filha de Zé Sérgio mostrou que tinha genética e talento para integrar a equipe nacional. E foi galgando postos e fazendo resultados até realizar o sonho de disputar uma Olimpíada.

No Ninho de Pássaro, no dia 22 de agosto de 2008, sua equipe chegou em quarto lugar, atrás da Rússia, Bélgica e Nigéria. "Com a desclassificação da equipe russa por doping, ficamos com o terceiro lugar".

O Brasil ganhou a medalha de bronze nos Jogos de Pequim. Com uma medalha olímpica em sua coleção e não conseguindo índice para competir na Olimpíada do Rio de Janeiro, achou que era hora de parar e ser mãe. "Eu tinha 31 anos e se fosse para correr meia boca, não correria mais".

Hoje, o pequeno João Gabriel mostra que ela fez a opção certa. O menino é o orgulho do casal Thaíssa e João Ricardo. "Hoje eu ainda corro, mas é atrás do meu filho, que não para o dia inteiro".

Thaíssa continua no esporte. É diretora técnica e segunda vice-presidente da Federação Paulista de Atletismo e membro da comissão de atletas da Confederação Brasileira de Atletismo.

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