Vão ter que me engolir

Descendente de japoneses escravizados no Brasil, técnico de atletismo Katsuhico Nakaya vai à 9ª Olimpíada

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

Quando os antepassados de Katsuhico Nakaya pensaram em viajar para o Brasil, fazia sentido. O Japão dos anos 1920 era um país pobre e sem muita perspectiva para quem ganhava o sustento com a terra. Mas ninguém imaginava que, ao chegar à Terra Prometida, como o Brasil era conhecido por lá, enfrentariam anos trabalhando em regime de semiescravidão nas lavouras de café do interior de São Paulo. Com a família de um dos mais premiados técnicos do atletismo brasileiro, aconteceu na região da Alta Paulista. Quando o próprio Nakaya começou a sua vida, encarou outra barreira: o preconceito. Quando ele tentou se tornar atleta, o então menino ouviu que "japonês não servia para atleta".

Katito, como era chamado pela avó, é nissei —filho de pais japoneses nascido no continente americano. Os avós por parte de pai vieram de Niigata; o pai Kunio nasceu em solo brasileiro e, na juventude, entre o trabalho nas plantações e a colheita do café, lutava sumô. Os antepassados por parte da mãe Sakiko partiram do Japão em 1927: vieram da região de Fukui Ken. As duas famílias chegaram iludidas pelas promessas de terras amplas, condições de trabalho e muita fartura.

"Meus avós contavam que o regime era quase de escravidão, moravam em casa de sapê", diz Katsuhico Nakaya, contando que todo o dinheiro prometido pelos donos de fazenda ia direto para a vendinha local, onde a família gastava apenas o necessário para sobreviver, sem nenhum excedente. Mesmo assim, Katsuhico virou atleta. E mais: olímpico. Defendeu o Brasil nos Jogos de Moscou e Los Angeles e foi técnico do time que foi medalhista de bronze no 4x100m feminino dos Jogos Olímpicos de 2008. Agora, será um dos integrantes da equipe técnica nacional que disputará as provas de atletismo em Tóquio.

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Conexão Tóquio

A partir de 23 de julho, olhares brasileiros estarão voltados a Tóquio, onde acontecerão os Jogos Olímpicos de 2020 —adiados para 2021 por causa da pandemia de coronavírus. É uma chance de a maior comunidade japonesa fora do Japão do planeta aumentar um pouquinho a conexão com sua terra natal. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do país asiático, são mais de dois milhões de japoneses ou descendentes vivendo no Brasil.

E a influência japonesa em nosso esporte é forte, como mostra a série Conexão Tóquio, do UOL Esporte. Em cinco capítulos, vamos mostrar como alguns dos grandes nomes do esporte no Brasil têm um pouquinho de japonês em sua história. São relatos de imigração, conhecimento e, às vezes, preconceito, que contam como os japoneses são importantes para nós.

Regime de sofrimento e exploração

Ele é um dos raríssimos velocistas nisseis que venceram o preconceito de uma época em que se acreditava, aqui no Brasil, que atletas de sua origem não dariam certo nas provas dos 100 e 200 metros. "Diziam que nós, descendentes de asiáticos, éramos limitados fisicamente".

Mas voltemos aos seus ancestrais e à chegada ao Brasil.

Era preciso mão de obra para cuidar da terra, e os negros tinham acabado de conquistar a liberdade. Então, chegaram meus antepassados. Eles chegaram certos de que teriam terra própria, mas trabalharam em regime de sofrimento e exploração por muito tempo. Não era exatamente o que imaginavam quando deixaram o Japão. Tudo era comprado no armazém do dono das terras em que trabalhavam e, no final do mês, o salário estava todo empenhado nas mercadorias para a sobrevivência da família."

Na propriedade onde se plantava café, o ferro de passar era esquentado com brasa, o banheiro ficava fora de casa e a iluminação era feita com lampião à base de querosene e com pavio de estopa. "O chuveiro era um balde com furinhos, e a água era esquentada no forno à lenha, mas peguei pouco esse tempo", relembra Katito, que com dois ou três anos já estava morando na cidade de Araçatuba, onde a família abriu um negócio de niquelação e cromeação e uma loja de auto-peças.

Como o descendente Katito, os Nakaya ganharam a corrida da sobrevivência na Terra Prometida. "Meu pai e minha mãe se conheceram na região de Marília, no interior de São Paulo, se casaram e, com muita dificuldade e trabalho, conseguiram comprar terras numa região mais afastada da cidade de Araçatuba. No começo, tiveram que desbravar o lugar, havia bichos e muito mato", conta Katsuhico, que se tornou Katito tão logo que nasceu na pequena cidade de Clementina.

"Minha avó, Shina Nakaya, gostava muito de uma música que fazia sucesso na voz do Nat King Cole", conta o velocista, que cantarola um pedaço da canção: "Cachito, Cachito, Cachito mio, pedazo de cielo, que Dios me dio". E Katsuhico virou Cachito, ou Katito.

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Limitações físicas? Ah tá!

A família tinha oito filhos. Katito era o quinto.

"Havia preconceito em relação à colônia japonesa, sim. Tanto que, na escola, a gente fazia de tudo para estudar e se igualar às demais crianças. Só assim, a gente era aceito. No esporte, competíamos entre nós mesmos nos clubes da colônia nipônica da região." Foi aí que Katito começou a escrever uma história de superação e resultados inimagináveis na época.

"Os estudiosos e até mesmo os técnicos mais destacados diziam que filho de japonês só fazia resultados nas categorias de base. E que quando crescessem acabavam superados por suas próprias limitações físicas. Enfim, japonês não servia para o esporte de alto rendimento".

Só que Katito encontrou o técnico José dos Santos Primo, quando este chegou a Araçatuba (depois de uma carreira de fundista em que defendeu o Brasil em competições sul-americanas). "Ele chegou para substituir um técnico húngaro, Franz Gaspar, que já estava velhinho". Primo viu qualidades naquele menino que, em 1971, correu uma competição intercolonial e marcou 11s9 nos 100 metros rasos. Primo era um obstinado. Katito também.

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Sede de vitória

"Eu treinava, queria ganhar. Podia ser como todos os asiáticos atarracado, brevilíneo, ter a perna mais curta. Mas eu, com 1,79m de altura, tinha uma velocidade espantosa." Katito construía uma reputação esportiva. E, mais que isso, tinha uma certeza:

"O menino japonês que fazia resultados na base só não conseguia seguir no atletismo fazendo marcas a nível nacional porque ia para o estudo. Era isso: eu via isso, sentia. Meus amigos todos se tornaram médicos ou engenheiros, ou dentistas, como o meu irmão Paulo. Por isso não se dedicavam mais aos 17, 18 anos aos treinos. Nossos pais queriam evitar o sofrimento que tinham passado na lavoura. Queriam que seus filhos tivessem diploma. Essa era a verdade, não havia limitação física."

Com essa certeza e essa determinação, Katito passou à segunda parte de seus planos para desmentir os treinadores mais destacados da época que insistiam em não levá-lo para estágios no exterior.

"Eles diziam que não adiantava. Que eu não ia evoluir, que meus tempos não iriam baixar".

Katsuhico Nakaya treinava para desmentir uma teoria e desbancar rivais nos 100 metros. E conseguiu. Começou a ser chamado para as equipes brasileiras em competições internacionais; ganhou respeito e reconhecimento dos treinadores dos grandes centros.

Eu treinava para sentar o pau nos outros corredores. Para sentar a borracha neles e mostrar que eu tinha futuro. E consegui. Passei a ganhar quase tudo e comecei a ser convocado para competições internacionais. Acabei ficando amigo dos técnicos que antes me evitavam."

Com seis meses de treinamento sistematizado com Primo, ele já foi campeão paulista. "Bati os 'bambambans' da capital com 11s01. Fui vice-campeão brasileiro na pista da Urca, com 11s01, e fui para o Sul-americano sub-17, em Comodoro Rivadavia, na Argentina, onde fiquei em quarto lugar".

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Era só o começo

Em 1974, ele estava na seleção juvenil que ganhou o 4x100 sul-americano no Peru. "Ninguém mais falava que eu era um japonês sem futuro. Como diria o Zagallo anos depois: tiveram de me engolir. Não havia nada de errado fisiologicamente comigo". Em 1977, o atleta chegou à seleção adulta e se classificou para a Copa do Mundo ao lado de Ruy da Silva.

"O Ruy e eu participamos da seletiva das Américas, no mesmo dia em que o cubano Sílvio Leonard correu 9s98, tornando-se o segundo homem a correr abaixo dos 10 segundos. Eu fiquei em quarto lugar com 10s48 na mesma prova em Guadalajara e só os quatro primeiros foram para o mundial em Dusseldorf".

Nos Jogos Pan-americanos de 1979, em Porto Rico, ele sofreu uma lesão grave que não o impediu de estar na Olimpíada de Moscou no ano seguinte. "Na prova individual dos 100 metros, não consegui passar para as semifinais, mas participei de dois tiros. E no revezamento fomos à final. Chegamos em 8º lugar: o Milton, o Nelsinho, eu e o Altevir".

Na Olimpíada de Los Angeles, mais uma vez o revezamento foi finalista. "Na série classificatória foi o Arnaldo, o Robson Caetano, eu e o Paulo Correia. E na final, o Arnaldo, o Nelsinho, eu e o Paulo Correia. Novamente o oitavo lugar".

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Doping fora de controle

Mas a grande exibição de sua vida ocorreu na Universíade de Edmonton, em 1983. "Fiz o meu melhor tempo: 10s25, marca eletrônica. Cheguei em quinto lugar numa prova que teve o jovem Ben Johnson, então com seus vinte anos".

Katito lembra que Ben Johnson já era um fora de série. "Só não estava ainda sob o efeito do tratamento à base do hormônio de crescimento. Aliás, nessa época, com o doping fora de controle, as provas do atletismo foram tendo tempos absurdos".

Se Ben Johnson foi apanhado posteriormente por usar drogas sintéticas e proibidas, Nakaya sabe que muitos outros métodos passaram impunes. Hoje, como técnico e estudioso dos segredos do atletismo, Katito tem muito o que falar. Com o conhecimento trazido das pistas, de estudante do cursinho de Fisioterapia e da faculdade de Educação Física, o professor comenta que soube nos bastidores de métodos inacreditáveis para dopagem.

"Um deles diz que se tirava o hormônio de cadáveres, porque aí nada seria detectado nos exames antidoping. Era uma das hipóteses que se comentava na época. Mas nunca comprovada."

São histórias e casos juntados em muitos anos de carreira. Em 55 países visitados.

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Nona Olimpíada

Katsuhico Nakaya tem 63 anos e é casado com Nancy Edith, que conheceu na Colômbia quando foi vice-campeão sul-americano dos 200 metros, em Bucaramanga, em 1979. O filho, Lucas, foi atleta, mas, hoje, se dedica ao marketing e à gestão esportiva. A filha Karen é casada com um engenheiro alemão e mora em Stuttgart. Dos três netos, ele mata a saudade pelo celular.

E essa é a história do Katito da vovó Shina: o nissei que desafiou o preconceito, correu o mundo e se prepara para sua nona participação olímpica na terra dos ancestrais.

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