Herança de avô

Campeã mundial de judô, Fabiane Hukuda é benzedeira como o avô japonês e faixa preta como a mãe brasileira

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

A relação entre a judoca Fabiane Hukuda e o Brasil começa antes mesmo de ela nascer: tem início a bordo do navio Hakata-Maru, em Yokohama, no Japão. Foi de lá que, em 1930, partiu a família do bisavô paterno da atleta, Ryokichi Fukuda, em direção à chamada "nova Terra Prometida". Do mesmo porto, no mesmo ano, a família do bisavô materno de Fabiane, Shintaro Kosako, embarcou para o mesmo destino.

O vínculo da esportista com o país se solidifica por meio do judô, esporte em que a mãe de Fabiane, Marisa, teve êxito quando a família chegou a São Vicente, no litoral de São Paulo. Ela se tornou faixa preta na modalidade, servindo de exemplo à filha, que, aos oito anos, competiu pela primeira vez. Aos 15, Fabiane já havia ido a uma Olimpíada —como reserva da equipe brasileira e, aos 19, se tornou a primeira mulher brasileira a vencer uma competição mundial no judô, o Mundial Júnior de 2000, na Tunísia.

Hoje, longe do esporte, a relação a que a ex-judoca se dedica é a de reencontro com o país de origem de seus antepassados. Terapeuta holística e benzedeira, coloca em prática os ensinamentos do avô japonês, que deixou a ela uma cartinha com as palavras usadas por ele para benzer, escritas em português e japonês.

Em entrevista ao UOL Esporte, Fabiane relembra a frustração ao ter tido sua vaga vendida por politicagem nas Olimpíadas de Sydney-2000, o dia em que entendeu que era hora de parar no judô e os tantos recomeços desde a aposentadoria. O que importa, ela afirma, é a solidificação do contato com o Japão em todas as modalidades que ousou praticar.

Conexão Tóquio

A partir de 23 de julho, olhares brasileiros estarão voltados a Tóquio, onde acontecerão os Jogos Olímpicos de 2020 —adiados para 2021 por causa da pandemia de coronavírus. É uma chance de a maior comunidade japonesa fora do Japão do planeta aumentar um pouquinho a conexão com sua terra natal. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do país asiático, são mais de dois milhões de japoneses ou descendentes vivendo no Brasil.

E a influência japonesa em nosso esporte é forte, como mostra a série Conexão Tóquio, do UOL Esporte. Em cinco capítulos, vamos mostrar como alguns dos grandes nomes do esporte no Brasil têm um pouquinho de japonês em sua história. São relatos de imigração, conhecimento e, às vezes, preconceito, que contam como os japoneses são importantes para nós.

A "nova Terra Prometida"

A família de Fabiane atravessou os mares em 1930, mas a história começa um pouquinho antes, quando o patriarca japonês Ryokichi Fukuda tinha uma pequena serralheria. Na região em que trabalhava, no final dos anos 1920 só se falava sobre a nova terra dos sonhos, um lugar grande e cheio de trabalho.

Fukuda ficou encantado com as histórias que ouvia. E quando foi ao cinema, decidiu: vendeu a serralheria e providenciou a viagem para o Brasil após assistir a um filme sobre o país. Era um sonho. E iria se realizar. Até que, na véspera do embarque, quando tudo estava pronto, puseram fogo na serralheria vendida. A negociação, então, não se concretizou e Fukuda ficaria no Japão, tentando sobreviver em um país em recessão econômica e sem sua principal fonte de renda. A ajuda dos vizinhos foi fundamental e, com doações, a família conseguiu viajar poucos meses depois.

A primeira parada daquele grupo de japoneses foi em Promissão, no interior de São Paulo. Assim que chegaram, começaram a trabalhar em uma fazenda de café. E, por um erro do escrivão brasileiro, os Fukuda se tornaram Hukuda na nova "Terra Prometida".

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

O avô benzedeiro

A família Kosako, a linhagem materna de Fabiane, saiu de Kobe e embarcou em Yokohama no mesmo ano em que os Fukuda-Hukudas vieram para cá. No Brasil, se instalou na Fazenda Chantebled, na cidade de Cafelândia. O patriarca Shintaro, bisavô da atleta, tinha 28 anos à época e era agricultor. Com ele, veio o filho, Massagi Katsuki, avô da ex-judoca. Benzedeiro, até hoje ele se faz presente no dia a dia da neta pelos ensinamentos deixados.

"Ele era budista, tinha um templo, benzia e ajudava as pessoas da cidade", relembra Fabiane sobre o avô, uma figura quase mítica da região —os locais (e a neta) chamavam Massagi de Paulo. "Vez ou outra, a gente ia visitar meu avô lá pelos lados de Juritis. Ele gostava de pescar e de horta. Nos tempos de agricultor, trabalhava com arroz e algodão", conta.

Os pais de Fabiane, Mario e Marisa, se conheceram, se casaram e se mudaram para Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira. Por lá, Fabiane fazia Balé. Foi só quando a família chegou em São Vicente, no litoral paulista, que a judoca teve o primeiro contato com o tatame.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Judô para vencer

"Meu pai, que tinha feito atletismo quando mais jovem, começou a treinar judô para se exercitar. Então, meu irmão, minha mãe e eu também entramos na academia", diz. Marisa, a mãe, se tornou faixa preta da modalidade e a filha logo seguiu seus passos. A primeira competição de Fabiane Hukuda aconteceu em 1989, quando ela tinha oito anos.

"Foi um torneio regional, mas eu sempre fui competitiva —e, confesso, sempre ganhava as lutas. Fui ganhando e seguindo no esporte. Eu ia tão bem que, em 1995, entrei na seletiva olímpica nacional, apesar da pouca idade".

Fabiane tinha 14 anos, era atleta do Vasco da Gama de Santos e, no ano seguinte, estava nas Olimpíadas de Atlanta-1996 como reserva da equipe brasileira. Foi lá que ela comemorou seus 15 anos.

Foi ali que comecei a alimentar a ideia de que, um dia, lutaria nos Jogos Olímpicos. Mas sei que entrei muito cedo nesse mundo das competições de alto rendimento. Hoje, vejo que não tive a fase de preparação, passei direto para o adulto. Naquela época, o Brasil não tinha estrutura adequada, eram os pais que pagavam todas as despesas de viagens. Viajavam os que podiam pagar."

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Frustração em Sydney

A garota de 1996 deveria ser uma estrela nas Olimpíadas seguintes. Afinal, quatro anos de experiência só ajudariam aquele fenômeno que chegou à seleção aos 15 anos. Mas não. O tempo passou e, quando Fabiane estava pronta para a Olimpíada de Sydney, em 2000, o sonho se tornou frustração em pouquíssimo tempo.

O Brasil não conquistou uma vaga olímpica na categoria até 52kg, a de Fabiane. Mesmo com a jovem brasileira sendo vice-campeã mundial júnior de 1998 e medalhista de bronze dos Jogos Pan-Americanos de 1999, um ano antes. "Por questões políticas, os dirigentes venderam minha vaga para a Venezuela. Fiquei fora em troca de votos políticos. Não gosto de falar disso. É algo que me magoa até hoje", lamenta.

Uma semana depois da Olimpíada da Austrália, veio a confirmação de que ela deveria, sim, estar nos tatames de Sydney: ela se tornou campeã mundial júnior na Tunísia. Foi a primeira mulher brasileira a vencer uma competição mundial no judô, oito anos antes de Sarah Menezes e Rafaela Silva repetirem o feito —as duas seriam, em 2012 e 2016, respectivamente, campeãs olímpicas.

Foram cinco lutas —a última, contra a francesa. Ganhei por koka. Foi a primeira medalha feminina de mundial e deu um prestígio maior ao judô feminino do Brasil. Passamos a ser respeitadas. Não éramos apenas participantes. E eu acabei sendo referência".

Foi um chororô danado na casa de Fabiane.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

O sonho da Olimpíada

Fabiane Hukuda era referência no judô feminino e o Minas Tênis Clube a levou para Belo Horizonte: um caminho aberto para o sonho olímpico. "Já não lutava mais na categoria 48 quilos, mas ainda atuava no velho estilo: um judô mais japonês, mais técnico e com menos força".

No Minas, ganhou diversidade maior de golpes e aperfeiçoou a parte técnica. Em 2004, em Atenas, lá estava Fabiane Hukuda pronta para realizar uma luta olímpica. "E foi apenas uma mesmo. Perdi a primeira luta para uma inglesa [Georgina Singleton] que, depois, perdeu para a japonesa [Yuki Yokosawa]. Então, não tive a oportunidade de tentar a recuperação na repescagem", lamenta.

Dois anos depois, a atleta se casou com Hans Peter Strubreiter, massoterapeuta da equipe austríaca de judô. Se mudou para a Áustria, se naturalizou austríaca e, em 2007, passou a representar o país nas competições internacionais. "Lutei pela Áustria no Campeonato Mundial do Rio de Janeiro, e o ginásio inteiro torceu para mim. A arquibancada ficou tingida de vermelho e branco, as cores do nosso clube, e, depois de cinco lutas, acabei na sétima posição".

Apesar do esforço, Fabiane não conseguiu a vaga austríaca para a Olimpíada de Pequim: a que seria sua segunda participação no maior evento esportivo do planeta. No ano de 2009, sua carreira seria abreviada por uma contusão no ombro, um caso cirúrgico que a afastou do tatame. Definitivamente.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Os muitos recomeços

De volta ao Brasil, Fabiane vislumbrava infinitas possibilidades de trabalho. "No retorno, eu não sabia ao certo a profissão que eu queria seguir". Por influência do marido, fez um curso de massoterapia. Então, se reaproximou do judô. "Vesti novamente o quimono, fiz a faculdade de Educação Física e me especializei em projetos relacionados às crianças", conta. Terminou treinando 100 alunos em um clube no Guarujá, no litoral de São Paulo.

Depois, fez um curso de acupuntura para controlar dor, algo que todos os atletas conhecem. O interesse pela terapia holística —usando os ensinamentos do avô budista benzedeiro Paulo— veio em seguida. Foi então que ela saiu do litoral e tentou um voo maior na cidade de São Paulo. Mas... "Sai do clube, tentei a grande cidade e deu tudo errado". Ela voltou ao Guarujá.

Era o ano de 2011. "Parei com o judô. Eu me separei do meu marido. E vi que era o judô ou a acupuntura, o tratamento fisioterápico. E escolhi a linha do tratamento com terapia holística. Era esse o meu caminho". Na clínica em que trabalha, prega a filosofia espiritualista, de bem estar mútuo. Além de terapia holística, Fabiane, aos 39 anos, trabalha com práticas meditativas e massoterapia. Estudiosa, fez cursos em centros espíritas, casas de umbanda e aprendeu sobre banhos de ervas e defumação.

"E meu avô Massagi Katsuki tem a ver com tudo isso que vivo hoje e tento passar às pessoas. Tem vezes que estou aqui atendendo e vejo antepassados junto, me ajudando a entender e atender as pessoas que me procuram. Tenho sim ancestrais que trabalham comigo", diz.

Fabiane conta que, recentemente, uma mulher idosa a procurou para atendimento na clínica e comentou que era da região de Araçatuba, onde seu avô morava. "Ela disse que ia no Centro Budista onde ele atendia, curava as pessoas e benzia, tudo gratuitamente. E eu falei para ela que o seu Massagi era meu avô. A mulher comentou que ele era uma pessoa do bem. Foi uma emoção grande".

Quando meu avô faleceu, ele deixou inclusive as palavras ditas em seu benzimento em uma carta. Só que está escrito em japonês e português. Até agora não consegui entender tudo, mas ele me disse —certa vez quando fui tomar um passe e ele surgiu no local— que o importante é que eu benza também. E eu benzo."

De vez em quando, levo o meu quimono a alguma palestra. Aqui na minha sala de atendimento, eu tenho um tatame para fazer alongamentos. Às vezes, sinto sim saudade daqueles tempos. Mas veja: nunca sinto saudade dos treinos, porque para mim nunca foi lazer".

Fabiane Hukuda

Não faz sentido treinar por treinar. E eu era perfeccionista: queria executar o golpe perfeito. Tinha responsabilidade. Era muito correta. E o esporte de alto rendimento não é saudável. Não é saudável treinar 6 horas por dia. Machuca o corpo. E eu não posso me machucar, senão não consigo trabalhar".

Fabiane Hukuda

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Leia também:

Tão cedo

Morte trágica em 92 interrompeu carreira de Alexandre, goleiro tratado como "melhor do que Ceni" no São Paulo

Ler mais

Agora vai?

Clubes brasileiros agem em maior crise institucional da CBF desde o Fifagate e ensaiam bases para nova liga

Ler mais

Herança Maldita

Sede da Copa América, Cuiabá convive com obras milionárias da Copa de 2014 inacabadas e abandonadas

Ler mais
Topo