Casa das poucas mulheres

A cada dez treinadores que vão aos Jogos Olímpicos, apenas uma é mulher. Por quê?

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Buda Mendes/Getty Images

Desde jovem, Gianetti Sena se dividiu entre os papéis de advogada, mãe e atleta da marcha atlética. Ela foi a primeira a ganhar uma medalha pelo Brasil na modalidade, no Campeonato Íbero-Americano de Atletismo em 1996. A paixão pelo esporte a motivou a fundar, ao lado do marido e também técnico João Evangelista de Sena Bonfim, o clube Caso (Centro de Atletismo de Sobradinho), no Distrito Federal.

Assim que encerrou sua carreira aos 44 anos, Gia (como é conhecida) se tornou treinadora do próprio filho, Caio Bonfim, que representará o Brasil em Tóquio. Ela ainda tentou seguir no direito ao mesmo tempo, mas acabou optando por se dedicar somente ao esporte.

"Sempre falo que comecei com uma brincadeira com o Caio, porque meu marido dava treinos de manhã, e meu filho só poderia praticar à tarde. Como tinha o conhecimento, embarquei de vez no mundo dos treinos. Troquei meu salário de R$ 60 mil por uns 6 mil, porque treinador não ganha nada e como advogada eu ganharia", brinca Gia.

Gia e Caio estão em busca da primeira medalha olímpica da marcha atlética para o Brasil — na Rio-2016, eles ficaram em quarto. A treinadora é uma gota em meio ao oceano de técnicos masculinos no esporte olímpico. Às vezes, mesmo com a experiência de 30 anos, ela fica sem jeito quando chega em competições e não encontra nenhuma outra mulher.

Buda Mendes/Getty Images

A história de Gia mostra um pouco a luta pela igualdade de gênero nas Olimpíadas. Ao longo das décadas, a participação de atletas mulheres vem crescendo significativamente. Em 1996, na Olimpíada de Atlanta, 34% dos competidores eram do sexo feminino. Em Tóquio, a expectativa é se aproximar da igualdade, com um recorde de 48.8%.

Por outro lado, ainda é muito baixa a quantidade de treinadoras em Olimpíadas. Segundo dados do Comitê Olímpico Internacional, a presença de técnicas nos Jogos de Verão e e Inverno nunca passou do patamar de 11% desde Vancouver-2010. A projeção para Tóquio é de 10% de treinadoras credenciadas. O COI reconhece que precisa de mais ações para melhorar a situação. Em relatório recente sobre o tema, a entidade sugeriu um plano de ação para que mais mulheres sejam elegíveis para as credenciais de treinadores olímpicos.

A seguir o UOL Esporte conta a história de brasileiras que conseguiram e que ainda sonham com uma vaga na Olimpíada.

Reprodução/Instagram

Buscar espaço no meio masculino é a nossa briga diária. Só existe uma maneira de conseguir invadir: é lutar pra ter atletas de alto nível. Temos que brigar mesmo: treinar, discutir, falar de igual para igual. Estamos sempre brigando por espaço onde a gente não deveria precisar. É chato ter que ficar provando que a gente pode o tempo inteiro. A pior coisa é isso. Ter que ficar provando para o mundo que as mulheres podem. A carga maior sempre está em cima da gente

Gianetti Sena, mãe e treinadora do atleta Caio Bonfim

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Treinadora da seleção, Suelen sonha com Paris-24

A falta de incentivo e o ambiente predominantemente masculino são as principais razões apontadas pelas treinadoras para explicar o número baixo de mulheres no meio. Melhor treinadora do Campeonato Brasileiro de boxe de 2020, Suelen Souza afirma que já foi ignorada e desmerecida por muitos homens durante competições e congressos da modalidade. Nadar contra a maré acaba afastando as mulheres de tentarem a carreira.

"Quando comecei aos 22 anos, eu queria me colocar, dar ideias e fui excluída muitas vezes. Se eu opinava, e um técnico masculino falava, ele era sempre ouvido e eu não. Mesmo que ele dissesse a mesma coisa que eu", relatou a treinadora, hoje com 31 anos.

"Já vi atletas meus subirem para lutar e ouvirem os técnicos falando para os adversários: 'Vai perder para ele? Ele é treinado por uma mulher'!"

A técnica começou a lutar aos 16 anos em um centro comunitário esportivo de sua cidade. Uma parceria com uma universidade local proporcionou bolsa de estudos aos jovens que praticavam o esporte.

"A chance de estudar me chamou atenção. Eu vim de uma família muito humilde, minha mãe é empregada doméstica e tem oito filhos para criar. Não tínhamos grana para pagar faculdade. A chance era uma bolsa de estudos", conta ela. Seu desejo era cursar engenharia civil, mas para a universidade só oferecia vaga ao curso de educação física, o que Suelen aceitou. "Me apaixonei pela área. Acabei preferindo construir pessoas a construir pontes", brinca.

Treinadora ainda aos 22, Suelen conquistou bons resultados com a equipe de São José e assumiu um cargo de coordenação. Após ser eleita a melhor técnica do Campeonato Brasileiro em 2019 e 2020, se tornou a primeira treinadora a chegar à seleção e já ajudou a treinar os sete lutadores brasileiros (cinco homens e duas mulheres) classificados a Tóquio.

Mas, como chegou ao time nacional apenas em março, acabou preterida do grupo de três treinadores, todos homens, que irão ao Japão. Do Brasil, ela torcerá pelo time sonhando com Paris-2024.

"Foi um processo de construção e trabalho para chegar à seleção brasileira. Foi muito estudo, muito resultado. Na seleção, a gente respira os Jogos Olímpicos. Chegar nesse processo é incrível, independente de quem vai para o Japão ou não. Foi exaustivo e pra mim é um sonho realizado. Agora, vou batalhar para um dia eu chegar lá", destacou a treinadora.

É importante o apoio da comunidade feminina dentro do esporte. Temos atletas, mas elas acabam não escolhendo ser técnicas, e preferem fazer outras coisas. Acho que nós, que estamos na linha de frente, temos que incentivar que outras professoras mulheres iniciem

Suelen Souza, técnica da seleção brasileira de boxe

Beto Noval Beto Noval

Michelle Lenhardt dá orientações ao marido Bruno Fratus à beira da piscina

Arquivo Pessoal

Esposa virou treinadora por acaso

Em 2016, Michelle Lenhardt assumiu o cargo de treinadora do nadador e marido Bruno Fratus por obra do acaso. O casal vive nos Estados Unidos, e o antigo técnico do brasileiro, Brett Hawke, não pôde mais acompanhá-lo nas competições.

"A gente estava no Alabama, sem contato com praticamente ninguém, e não tinha quem pudesse treiná-lo", diz Michele, que também é nadadora e abraçou a tarefa. "Eu já tinha tirado minhas certificações de personal trainer e health coach e aí assim que eu assumi o cargo de treinadora do Bruno, eu entrei para a USA Swimming. Hoje eu sou integrante da federação americana de natação", contou.

Ao contrário da maioria das mulheres treinadoras, Michelle não teve problemas por causa de seu gênero. Segundo ela, a comunidade da natação é muito unida e sempre teve muito respeito por seu trabalho. Seu desafio foi encontrar um equilíbrio entre ser esposa e treinadora de Fratus.

"No começo foi bem difícil. Não que a gente tenha uma hierarquia familiar, mas muitas vezes o homem receber um 'comando' da própria esposa era complicado. Às vezes, quando a esposa-treinadora está brava com o atleta, no caso o marido, ela fala um pouco mais alto, chama atenção de uma forma mais ríspida... A gente chegou a se desentender em alguns momentos", admite.

O casal tentou separar as coisas e não falar de trabalho em casa. "Mas não funcionou, porque o nosso assunto acaba voltando para natação. Com o tempo, tudo foi fluindo de forma natural. Acreditamos muito no diálogo. Estabelecemos o papel de cada um no time, porque os dois querem o mesmo resultado", conta Michelle.

Se você tem um sonho, não deixe ninguém dizer que você não pode realizar porque é mulher. Se você quer ser técnica de qualquer esporte, seja de formação de base ou alto rendimento, nunca digam que vocês não são capazes. Vocês são, sim. Confiem em vocês

Michelle Lenhardt, treinadora e esposa do nadador Bruno Fratus

Facebook/CBF

Brasil também tem pouca participação feminina

De acordo com dados do COB, o esporte brasileiro segue a média do restante do mundo em Olimpíadas. Em Atlanta-96, 4,6% dos treinadores da delegação do Brasil eram mulheres. Quatro anos depois, em Sydney, as técnicas representavam 10,4%. A melhor proporção alcançada pelo país foi em 2008. em Pequim, quando dos 61 técnicos, 7 eram do sexo feminino, ou seja, 11,4%.

Pia Sundhage, a sueca que comanda a seleção feminina de futebol, representa uma esperança de mudança no cenário olímpico. Ela será a primeira mulher a comandar a seleção em uma Olimpíada. Pia é apenas a segunda treinadora da equipe na história. Desde que chegou em, 2019, ela levanta a bandeira de igualdade e fez questão de montar uma comissão técnica mista.

"Se as atletas tiverem bons treinadores, quando se aposentarem, se transformarão em ótimas treinadoras. Vai ser bom para o futebol feminino se elas continuarem no esporte, se forem generosas e compartilharem seus conhecimentos", destacou Pia em entrevista ao UOL Esporte em dezembro de 2020. "Quando estive aqui pela primeira vez, confesso que não vi tantas mulheres na CBF. Mas, agora, vejo. Portanto, há uma palavra muito importante: mudança, e parece que o Brasil abraçou a mudança".

John Walton - PA Images/PA Images via Getty Images John Walton - PA Images/PA Images via Getty Images

COI e COB admitem necessidade de ação mais efetiva

Nos últimos anos, o Comitê Olímpico Internacional implementou mudanças que ajudaram efetivamente o crescimento da participação de atletas, como cotas para esportistas mulheres. O exemplo mais recente é o de Tóquio 2020, em que quatro federações terão o mesmo número de atletas femininas e masculinas: canoa, remo, tiro e levantamento de peso.

Apesar disso, o COI reconhece a importância e necessidade de apoiar a participação de mais treinadoras. O departamento focado nos esforços pela igualdade entre homens e mulheres recomendou que a entidade desenvolva e coordene um projeto para que tenha uma evolução em Paris-2024.

"O COI lançou novos objetivos de inclusão e igualdade de gênero para 2021-2024, com referência explícita a como podemos construir o sucesso da Agenda Olímpica 2020", afirmou o comitê em reposta a um questionamento do UOL Esporte.

"Para desenvolver as conquistas em relação aos atletas, o COI agora também se concentrará na igualdade de gênero dentro das comissões técnicas, especificamente, no que se refere a treinadores. Os objetivos para 2021 a 2024 incluem o desenvolvimento de um plano de ação em colaboração com Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais para que mais treinadoras sejam elegíveis e selecionadas para participar de Campeonatos Mundiais e Jogos Olímpicos", acrescentou o COI.

O COB afirmou que tem maioria feminina entre seus colaboradores e que realiza ações para abrir as portas às mulheres.

"Estimulamos a presença feminina também no ambiente corporativo, atuando como líderes na gestão esportiva das entidades. Dentro da nossa estrutura, as mulheres são maioria. Com uma qualificação profissional cada vez maior nos esportes olímpicos e cursos de capacitação do Instituto Olímpico Brasileiro, o Brasil enviou a primeira missão na história inteiramente feminina a liderar a delegação brasileira nos Jogos Sul-Americanos de Praia em Rosário-2019, com nove mulheres responsáveis por todas as áreas da operação", afirma o comitê.

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