Pressão para encantar sem expor promessas é desafio atual da seleção
Gabriel Carneiro e Igor Siqueira
Do UOL, em Belo Horizonte
31/01/2022 04h00
Uma das discussões recorrentes entre torcedores e também no ambiente da mídia esportiva é sobre a capacidade da seleção brasileira de gerar encantamento, sobre a busca pelo ideal subjetivo de futebol bonito em ano de Copa do Mundo. Apesar da classificação antecipada para o Qatar e da possibilidade de melhor campanha da história das Eliminatórias neste formato, o time dirigido por Tite não é unanimidade em termos de aceitação pública.
Essa pressão para encantar é administrada com cuidado dentro da comissão técnica. Ao mesmo tempo em que é um objetivo perseguido internamente, também é motivo para Tite se armar e criar discurso em defesa do próprio trabalho. Embora tenha perdido a Copa América 2021, a caminhada nas Eliminatórias tem 11 vitórias e três empates, melhor ataque e melhor defesa.
Sabemos que as pessoas vivem de entretenimento, mas normalmente elas não têm muito equilíbrio quando falam, quando exigem, porque exigem resultado e o resultado está aí, aí já não querem resultado, querem outra coisa, e outra coisa. Não podemos ir nessas incertezas, tem que ter uma convicção muito clara do que que a gente quer, o que a gente quer propor e entregar, a história que queremos contar e fazer dentro da seleção. Os resultados estão aí e é evidente que temos que buscar todos os dias sermos um pouco melhores para chegar o mais perto possível da excelência."
Daniel Alves, lateral-direito da seleção brasileira
Ainda há um elemento pouco levado em conta, mas que faz parte das reflexões e posicionamentos públicos de pessoas que trabalham na seleção, segundo ouviu o UOL Esporte: não colocar responsabilidade demais sobre os ombros dos jogadores que personificam esse ideal de futebol bonito.
Num ciclo de Copa do Mundo em que a principal estrela do time foi desfalque em quase metade dos jogos, a atenção fica voltada para quem possa dividir esse protagonismo ofensivo com Neymar e proporcionar lances de encantamento, como dribles e jogadas individuais. Na Copa América de 2019, o cara da ocasião foi Everton Cebolinha. No ano passado, Raphinha chegou com tudo e roubou os holofotes. Agora a missão parece ser de Vinicius Júnior, destaque do Real Madrid.
Cebolinha sumiu, ficou fora das últimas quatro convocações. Raphinha é titular, mas o nível de desempenho caiu nas últimas apresentações depois de um início fulminante. Já Vinicius Júnior está emendando uma sequência de jogos agora - ainda sem uma atuação estrondosa, apesar da lambreta diante da Argentina.
Em comum entre todos os casos, o pedido de paciência de Tite em relação às altas expectativas criadas sobre os candidatos a protagonista. Nos bastidores da seleção e também em seus posicionamentos públicos, o treinador trabalha para segurar a empolgação, controlar o sentimento de que jogadores tão jovens podem assumir a responsabilidade de ser referências técnicas da equipe.
"Temos que ter muito cuidado em relação ao atleta jovem. Calma com expectativas exageradas. E falo de uma forma de um profissional já experiente e que já passou por 'n' situações de ver que esses atletas jovens às vezes oscilam", disse Tite no dia da convocação, no começo do mês.
O pensamento é de que o peso de defender a camisa da seleção carrega um aspecto emocional que pode prejudicar o desempenho dos jogadores, ainda mais num contexto de busca pelo encantamento, pelo tal futebol bonito.
"Tem muitas pessoas que eu represento"
São frequentes os questionamentos de profissionais da mídia sobre as escolhas de Tite e também sobre um possível desinteresse gerado no torcedor pelo futebol que a seleção joga. É tão comum que motivou a criação de uma retórica já repetida pelo treinador pelo menos três vezes nos últimos meses e que mostra como tais cobranças têm importância nos bastidores, como os profissionais veem essa pressão como algo a ser considerado.
Tite é contra generalizações e rejeita frases do tipo: 'a imprensa acha o futebol da seleção burocrático' ou 'a torcida tem antipatia pela seleção'. Ele diz que o sistema de jogo e o desempenho da equipe podem representar ou não a opinião do crítico, no sentido de que "a torcida" ou "a imprensa" são termos pretensiosos. "Alguns compreendem, outros não", já chegou a dizer.
Sendo assim, Tite acha que seu trabalho representa o anseio esportivo em relação à seleção de parte da sociedade ao mesmo tempo em que não representa o de outra parte e que isso é "normal, natural". É um discurso de defesa do próprio trabalho que tem sido alimentado na esteira dos questionamentos.
Fred titular em debate
O volante Fred se firmou como titular da seleção brasileira no ano passado e desde então isso é motivo de críticas. O jogador do Manchester United não tem o mesmo estilo de jogo de Paulinho, que foi o titular na Copa do Mundo da Rússia. Ele faz poucos gols: dois em 23 jogos pelo clube nesta temporada e só um em 48 jogos de 2020/2021. Também não é grande destaque no quesito passes para gol.
Ou seja, é um jogador que pelos números pode ser considerado pouco efetivo ofensivamente, fora do que o imaginário do futebol brasileiro compreende, de modo generalista, para um jogador da posição. Só que Tite não abre mão dele, considera o equilíbrio fundamental entre defesa e ataque. Ele deu espaço para Douglas Luiz, Bruno Guimarães e Gérson na função, mas não se convenceu.
De acordo com as reflexões de Tite nos bastidores, aliás, a presença de Fred é fundamental para que os quatro jogadores mais ofensivos da seleção tenham a capacidade de criar chances de gols, se sentirem livres para tentar uma jogada diferente sem a necessidade de uma transição defensiva desesperada se perderem a posse de bola numa tentativa de drible, por exemplo.
Para que a individualidade de jogadores como Neymar, Raphinha, Vinicius Júnior, Philippe Coutinho, Lucas Paquetá ou qualquer outro apareça, é preciso ter segurança, equilíbrio. Ou seja, na ideia de Tite, para haver encantamento é necessário que tenha alguém como Fred no time. Essa é uma das conclusões deste ciclo para o Qatar, que Tite considera uma "construção de equipe".
O treinador já manifestou publicamente que o auge precoce da seleção brasileira assim que ele assumiu o comando, em 2016, é hoje um peso. O máximo desempenho técnico daquele time foi atingido nas Eliminatórias, não na Copa do Mundo. Então, a ideia agora é trabalhar o máximo de alternativas de jogo, formações, esquemas táticos e até jogadores e funções em campo para detectar o que funciona e o que não funciona. É para isso que serve o ciclo completo, que o treinador não teve antes. "Te permite até errar", já disse.
O acompanhamento dá razão à filosofia: 84 jogadores diferentes foram convocados desde a Copa da Rússia, sendo 46 estreantes. Alguns se firmaram, outros não. O radar de selecionáveis vai afunilando quanto mais perto do Qatar se está. Os testes vão durar até o fim das Eliminatórias, enquanto os amistosos de junho e setembro serão para repetir padrão e consolidar uma formação.
O que Tite espera é ver a seleção brasileira na plenitude de seu desempenho no Mundial. Inclusive para gerar encantamento, que é algo que não sai de sua maneira de enxergar os processos.
O grande objetivo nosso enquanto seleção é dar orgulho, satisfação e alegria, independentemente de qualquer que seja o fator externo (...) A seleção brasileira quando trabalha assume a responsabilidade de tentar jogar da melhor forma."
Tite, em 12 de junho
O próximo jogo da seleção que caminha nessa linha tênue entre tentar encantar e ainda não ter conseguido, se permitir errar em nome da busca das melhores soluções e ao mesmo tempo proteger seus destaques é amanhã (1). O adversário é o Paraguai, no Mineirão, às 21h30.