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Cotas raciais são a solução para tornar o futebol menos racista?

Sebastião Arcanjo, o Tiãozinho, presidente da Ponte Preta, no Moisés Lucarelli - VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADAO CONTEUDO
Sebastião Arcanjo, o Tiãozinho, presidente da Ponte Preta, no Moisés Lucarelli Imagem: VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADAO CONTEUDO

Gabriela Chabatura

Colaboração para o UOL

20/11/2020 12h20

Você já parou para pensar onde os negros estão inseridos no futebol? Muitos deles se tornaram protagonistas com a bola nos pés, são os casos de Pelé, Leônidas da Silva, Domingos Antônio da Guia, Garrincha e até mesmo Neymar. Mas fora das quatro linhas, como é que ficam pessoas? No dia da Consciência Negra, o UOL ouviu as opiniões de pesquisador e dirigentes sobre a viabilidade das ações afirmativas no futebol como um instrumento de reparação histórica para a maior participação de negros e negras em funções de liderança e poder para, de fato, um engajamento antirracista.

É importante mencionar que a questão racial não é um fenômeno recente no futebol. Desde a sua origem no país, no fim do século 19, já se tratava de um esporte burguês e elitista e, portanto, desenvolvido por e para pessoas brancas. Ao compreender essas nuances fica fácil deduzir quais eram os espaços reservados às pessoas de pele escura em uma sociedade que se reconfigurava após a Abolição em 1888.

Segundo registros históricos, o primeiro atleta negro a jogar oficialmente por um clube foi Miguel do Carmo em 1900, pela Ponte Preta. Desde então, a existência de um corpo racializado nos gramados, para além da execução de trabalhos subalternos, se tornou também um ato político. A mensagem era direta para a branquitude, que atribuía aos corpos negros um lugar de não humanidade.

Tais resquícios do colonialismo até hoje reverberam no futebol brasileiro. Mesmo constituindo a maioria dos atletas, negros e negras seguem longe dos principais cargos estratégicos, de gestão ou de ciências do esporte. Atualmente, Sebastião Moreira Arcanjo, da Ponte Preta, é o único presidente negro entre os clubes das Série A, B e C.

O professor e doutor em filosofia Renato Noguera, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), defende a aplicação das cotas no esporte. Para ele, essa é a maneira mais eficaz de enfrentar o racismo no futebol e demais modalidades.

"Entendendo que o racismo é estrutural, o que está em jogo? O privilégio da branquitude com um certo pacto narcísico. Quando falamos de futebol, isso também é reproduzido. Há uma reprodução sobre quem pode fazer gestão, que é uma atividade cerebral, tem relação direta com estratégia, tática, comando, controle emocional, gestão de pessoas e tudo isso é interditado às pessoas negras à medida que o racismo faz com que pessoas negras sejam consideradas como coisas e animais. É por isso que se pode ter muito jogador negro, mas pouco técnico e quase nenhum dirigente. Tem a ver com o lugar de comando", contextualizou Noguera.

"A grande questão do futebol fala sobre as maneiras de enfrentar isso e que também passa pela representatividade. A representatividade da ordem simbólica também é importante junto com medidas, com políticas que façam com que essas vozes negras apareçam. E aí ocupar espaços de poder faz muita diferença porque esses espaços são interditados para o homem negro no futebol. Portanto, um debate qualificado no futebol passa fundamentalmente por uma política de ações afirmativas, pois é preciso entender que todo branco opera o racismo e o racismo é estruturante. O branco reproduz e imprime o racismo não só na ponta do iceberg, que é um xingamento, mas também em inúmeras outras práticas que quem não tem as ferramentas para olhar não as enxerga", completou.

Renato Noguera reitera a importância das entidades, como Fifa e CBF, avançarem nas discussões e irem além das campanhas em redes sociais ou mensagens exibidas à beira do campo: "Para combater o racismo, não adianta ficar erguendo faixa e dizer que somos todos iguais e que o racismo é ignorância. O racismo não é um problema cognitivo, é uma questão de privilégio, de território, de vantagem competitiva, uma questão de monopólio de visibilidade e favorecimento. Levantar cartazes só faz a manutenção. Nós temos de falar sobre isso".

"Cansamos de bater e esperar alguém abrir a porta"

Único negro à frente de um clube entre os 60 que compõem as três divisões nacionais, Sebastião Arcanjo - também conhecido como Tiãozinho - tem longo histórico de militância no Movimento Negro. Não à toa, gosta de resgatar nomes de companheiros que o inspiram na luta antirracista, como Abdias do Nascimento, e que "pavimentaram o caminho" para que a atual geração pudesse galgar novas possibilidades de existência. O mandatário da Macaca é favorável às cotas e diz "comprar briga com muita gente" em Campinas, no interior paulista, por defender pautas que ainda são consideradas polêmicas dentro do futebol.

"Muitos afirmam que no futebol não se discute política e religião, e até hoje isso permeia nesse ambiente. Essa cultura ainda está muito presente no futebol e depois queremos que os garotos cresçam com uma formação e posição política. Eu entendo que há uma necessidade de arrombarmos algumas portas, porque cansamos de bater e esperar alguém abrir. Nós cansamos de ficar esperando a senha para sermos atendidos. Logo, penso que as cotas são urgentes, um caminho quase que inevitável para o futebol. Vamos ter de marchar nesta direção".

Aline Pellegrino, cordenadora de competições femininas da CBF - Divulgação/FIFA - Divulgação/FIFA
Aline Pellegrino, cordenadora de competições femininas da CBF
Imagem: Divulgação/FIFA

Coordenadora de competições femininas da CBF, Aline Pellegrino também lembra o fato de ter se beneficiado deste tipo de política pública para se tornar jogadora de futebol e, agora, dirigente. "Ao longo da minha trajetória no esporte, as ações afirmativas desempenharam um grande papel para a construção de uma base acadêmica, de capacitação, para que hoje eu estivesse aqui, ocupando a posição de coordenadora de competições femininas da maior entidade esportiva do futebol nacional. Ser atleta possibilitou caminhos de formação, e as portas abertas que encontrei também foram fruto de iniciativas sociais. Precisamos ter em mente que a linha de largada não é a mesma para todas as pessoas e há mecanismos que podem ser usados e incentivados para contribuir com o processo de reparação histórica e de igualdade de oportunidades", declarou.

"O futebol nada mais é do que um reflexo da sociedade. Então precisamos que toda essa sociedade esteja engajada em mudanças, em busca de uma realidade antirracista. No caso dos esportes, especificamente, as instituições têm a oportunidade de usar a visibilidade como agente transformador para ampliação de mensagens e ações. E aí estamos falando da responsabilidade de cada player em gerar a discussão, trazer a conscientização para as conversas, pensar e desenvolver essas medidas efetivas. O esporte tem totais condições de ser um grande agente de transformação da pauta antirracista, como de tantas outras tão importantes na nossa sociedade. Eu sempre vou acreditar em um futuro mais inclusivo. E todos temos que contribuir diariamente", acrescentou.

O ex-jogador e atual vice-presidente da FPF (Federação Paulista de Futebol), Mauro Silva, destaca a educação como agente de desenvolvimento e cita o passado de escravidão no Brasil para justificar o fomento às práticas que levem em consideração a multiplicidade da sociedade brasileira.

"Falando sobre minha experiência pessoal, ter chegado a essa posição de liderança no futebol, como vice-presidente eleito na FPF em chapa com o presidente Reinaldo Carneiro, é mérito da formação que tive na infância e adolescência, do incentivo aos estudos, da bolsa escolar na época que era atleta do Guarani e do sentimento que reverberou por toda a minha vida da importância da capacitação continuada. Aliás, foi a condição imposta pela minha mãe: de que eu só poderia jogar futebol se também estudasse".

"Quando falamos em políticas de ações afirmativas, estamos tratando de um mecanismo para reparar a história do Brasil, de 300 anos de escravidão, de todas as consequências deixadas e de feridas vistas até hoje. Então, investir na educação, na capacitação e na formação é uma medida necessárias se quisermos oportunizar a pluralidade e combater o racismo em cenários tão desiguais".

Ainda de acordo com Mauro Silva, a FPF promove encontros para tratar destas questões e discutir como a visibilidade do esporte pode ser utilizada para apoiar as causas sociais e "políticas públicas que combatam a desigualdade".