Minha estratégia é a luta

Único presidente negro nas Séries A e B, Tiãozinho lidou com racismo na Ponte e quer o futebol mais plural

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Divulgação/Ponte Preta

A reunião do Conselho Deliberativo da Ponte Preta no final do ano passado serviu para Sebastião Moreira Arcanjo, o Tiãozinho, apresentar os nomes que iriam compor sua diretoria. Era a missão inicial do primeiro negro a presidir o clube campineiro.

Em sua gestão, Tiãozinho quis ser plural. Os dez cargos da diretoria agora seriam ocupados por três negros, dois descendentes de orientais, quatro brancos e uma mulher.

A atitude que poderia ser vista como positiva gerou o primeiro caso de racismo a ser lidado pela nova gestão. Nas redes sociais, um conselheiro escreveu que achava que o clube fosse anunciar "gente" para os cargos. A mensagem repercutiu. O conselheiro teve seus direitos suspensos, e o Conselho Deliberativo da Ponte Preta abriu uma investigação.

"Quando você pega essa frase, você tem várias formas de justificar ou tentar justificar. Mas o pano de fundo é essa pessoa não entender que o mundo está mudando e que ela precisa mudar também", reflete Tiãozinho.

Durante uma conversa de duas horas com o UOL, Tiãozinho se colocou como agente dessa mudança. Sua simples presença no futebol já é um ponto fora da curva: é o único presidente negro entre os 40 times das Séries A e B do Brasileirão.

"Na posição de alguém que está liderando esse debate, tenho que ter uma postura muito firme, muito coerente, para estimular que outras pessoas não desistam da luta, não desistam de travar o bom combate".

Divulgação/Ponte Preta

Assista à entrevista na íntegra

VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADAO CONTEUDO VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADAO CONTEUDO

"Ser negro no Brasil é algo que exige muita consciência"

O que o sujeito ganha com isso? Apanha quando sai na rua, apanha da polícia. Se vai procurar um emprego, não consegue por causa da tal boa aparência. Não pode nem usar uma roupa ou um cabelo que remete aos seus costumes, porque no Brasil é feio parecer com África. O que a gente gosta mesmo é de parecer com europeu.

O Brasil se nega a reconhecer e olhar a sua própria história. As pessoas esquecem que esse país teve 350 anos de escravidão. Esquecem que esse país promoveu o maior tráfico humano de pessoas da história.

E a Ponte Preta não está imune a esse tipo de contaminação, por mais bonita que seja nossa história. Somos o clube que incluiu negros desde sua fundação. Mas se vivemos em uma sociedade racista, também temos pessoas aqui com compreensões diferentes das minhas sobre essas questões.

Ser o único presidente negro da história desse clube é algo que toca muito o meu coração. Remete à minha infância, a todo esse processo de exclusão, que é racial e social em todo o nosso Brasil.

O futebol está presente na vida do povo brasileiro e pode ajudar a romper essa chaga. Eliminar esse resquício da escravidão e permitir que nossos jovens possam sair às ruas sem que seus pais e mães fiquem rezando para voltarem vivos.

O Brasil tem um problema que é a chamada naturalização da barbárie. Quando falamos de machismo, racismo, homofobia, a média do brasileiro sempre procura naturalizar esse efeito. Esse é o lado perverso.

O brasileiro até reconhece que tem racismo aqui, mas ele nunca se entende racista. A frase "não tenho nada contra negro, até tenho um amigo negão legal" expressa muito bem isso. É o racismo cordial. Mas só quem sofre as dores do racismo sabe que ele nunca foi nem será cordial. É um ato de violência. E, na maioria das vezes, praticada e estimulada pelo próprio Estado brasileiro.

A gente pode criar uma consciência e fazer com que o Brasil entenda a importância da população negra na formação econômica, cultural e social da nossa sociedade. E se eu puder dar a minha contribuição enquanto presidente da Ponte Preta, vou me esforçar para isso.

Divulgação/Ponte Preta Divulgação/Ponte Preta

Dos trilhos do trem à presidência

Tiãozinho é torcedor da Ponte Preta desde pequeno. Mas nem sempre teve dinheiro para acompanhar o clube da arquibancada. A infância humilde no bairro da Vila Georgina ao lado dos quatro irmãos fazia com que fosse necessário improvisar. "A gente ficava assistindo ao jogo nos trilhos do trem [instalados num morro vizinho ao estádio]. Quando o portão abria no segundo tempo, corríamos para o campo para ver a parte final".

Mas ser presidente da Ponte Preta não era algo que passava na cabeça do jovem torcedor Sebastião. Quando adolescente, o que ele queria mesmo era voar.

A vontade fez com que prestasse um concurso para a escola de aviadores da Aeronáutica. E deu certo. O menino de 16 anos estava aprovado e poderia realizar o sonho. Mas não realizou. A distância de 500 km de Barbacena (MG), onde ficava a escola, de Campinas (SP), era demais para que o pai Ataides deixasse o filho entrar na carreira militar.

"Fiquei muito frustrado por um período, porque era algo que eu sonhava muito. Eu achava aquele negócio o maior barato. Um dia, fui conversar com um brigadeiro e ele falou: 'acho que seu pai tinha razão. Você está melhor no que está fazendo hoje'".

Vetada a carreira militar, Tiãozinho prestou outro concurso. Passou mais uma vez e começou a trabalhar fazendo a leitura do consumo de energia nas casas para a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL). Ele segue trabalhando na empresa até hoje, agora como especialista em assuntos corporativos. Deixou a instituição apenas no período em que entrou na vida pública: foi vereador entre 1997 e 2003 e deputado estadual de 2003 a 2007, sempre pelo PT. Atualmente, é filiado ao PCdoB.

Já fora da vida pública, foi eleito vice-presidente da Ponte em 2017. Estava próximo da presidência, mas não tinha o objetivo de um dia assumi-la. "Eu cheguei a declinar o convite para ser candidato nas eleições por razões profissionais. Mas quando houve o afastamento do presidente, não tinha outra escolha a não ser assumir o cargo. As coisas foram acontecendo".

Tiãozinho assumiu a presidência depois que José Armando Abdalla Jr. renunciou ao cargo alegando problemas de saúde.

Divulgação/Ponte Preta Divulgação/Ponte Preta

"Ah, você que é o presidente?"

O caso de racismo que abre essa reportagem não é o único que Tiãozinho teve que assimilar desde que assumiu a presidência da Ponte Preta. Ele não entra em detalhes sobre casos específicos, mas registra que são aqueles aparentemente mais "sutis" que ficam marcados em sua memória.

"Já tive vários exemplos. É sempre algo muito sutil, de uma maneira que tenta passar despercebido. 'Ah, você que é o presidente? Não sabia, desculpa'. Os espaços de tomada de decisão possuem uma atmosfera inibidora. Se você não estiver preparado para isso, vai ser ignorado no canto da mesa".

Ser o único presidente negro entre os 40 principais times do país tornam situações assim uma constante. Na dúvida, o mandatário sempre é a pessoa branca que o está acompanhando.

"Estava uma vez com um colega e um sujeito chegou para falar com ele. Ele disse: 'o presidente aqui é ele'. E aí a história muda. O cara começa a se virar nos 30 para tentar sair da armadilha que ele mesmo criou".

Os constantes casos fizeram com que Tiãozinho aprendesse a enfrentá-los. "Eu tenho as costas calejadas. Aprendi desde cedo com a minha avó a andar de cabeça erguida, sabendo o que quer. Brinco sempre que no um contra um, eu vou para dentro mesmo. Eu sei lidar com essas coisas, mas nem todo mundo lida como eu".

VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADAO CONTEUDO

A luta antirracista

Malcolm X falava que nós estamos por nossa própria conta. E quando você depende só de si para resolver um problema, a tendência é adotar posições mais extremadas. Quando a gente consegue envolver outros atores na luta antirracista, quando pessoas não negras se engajam nessa luta, é algo que temos que comemorar, na minha opinião.

É para se comemorar porque estamos saindo de uma luta que era, sobretudo, liderada e organizada pelo movimento negro brasileiro e que agora passa a ter uma dimensão social muito mais relevante.

Fiquei muito feliz em ver uma participação espontânea das torcidas organizadas da Ponte Preta nessas manifestações antirracistas e por democracia. E isso aconteceu sem nenhum incentivo, nenhum apoio. Torcida é torcida, diretoria é diretoria. É preciso saber separar.

Saber que na Ponte Preta tem grupos se organizando contra o racismo, tem grupos antifascistas, é um sinal de que a gente está no caminho certo. Pode demorar um pouco, mas estamos no caminho certo.

Eu não sou daqueles que acham que tudo vai se resolver de uma hora para outra. Como diriam os Titãs: tudo ao mesmo tempo agora. Não. Vai ter um tempo político para essas coisas acontecerem.

Mas quando a gente vê as pessoas lutando contra o racismo no Japão, na Bélgica, na Holanda, em São Paulo, em Campinas... isso é sinal de que a humanidade está entendendo que precisamos enfrentar essa questão e dar respostas concretas. Isso é o que a humanidade espera das autoridades. E no Brasil não vai ser diferente.

Estratégia para sobreviver

Tiãozinho fala, mas entende quem se cala. O dirigente acredita que o medo de represália e da discriminação fez com que muita gente optasse pelo silêncio para sobreviver. "Eu escutei muito dentro de casa pela minha mãe e minha avó: 'a gente precisa saber como é que se sobrevive nesse mundo'. O que elas queriam dizer é que nossos ancestrais vieram da África para o Brasil e se nós chegamos até aqui é porque houve uma estratégia de sobrevivência".

"Não podemos sair condenando ninguém, fazendo críticas equivocadas. É preciso entender qual é a estratégia que as pessoas adotaram para chegar onde chegaram".

A estratégia o fez chegar até aqui. Mas agora ele busca uma nova para o futuro. Fã de Bob Marley, diz querer "pavimentar a estrada para as próximas gerações".

"Aqueles que chegaram pegar uma machadinha, uma enxada e, como diria Bob Marley, saíram picando as árvores para fazer as trilhas e fugir em busca da liberdade. Nós recebemos uma condição melhor para lutar. Agora, essa estrada está em condições de ser pavimentada. Temos que pavimentá-la e tirar os pedágios que impossibilitam qualquer mobilidade social, sobretudo, da nossa juventude".

Tiãozinho tem nos filhos aliados na luta. Pai de Michele (34), Tainá (28) e Hugo (14), diz que a negritude é um tema constante dentro de casa. "Sempre foi e sempre será em qualquer família negra, porque isso vem lá de trás, desde 1534. Todo mundo em casa é engajado, porque todo mundo ali sofre as mesmas dores".

Aprendi a lidar com esse assunto com a minha mãe e minha avó. Todo mundo estava focado nessa estratégia de sobrevivência, de como desviar das balas perdidas e sair das armadilhas. Eu compreendo quem tem dificuldade de assumir certas posições, mas não vou desistir de convencê-las.

Tiãozinho

Divulgação/Ponte Preta Divulgação/Ponte Preta

"Não podemos recuar"

As manifestações de Tiãozinho e da própria Ponte Preta sobre questões sociais jogam um holofote que nem sempre esteve ali. O dirigente sabe que quanto mais fala sobre esses temas, maior poderá ser a pressão caso o time não corresponda em campo.

"A pressão é muito forte em qualquer clube de futebol, independentemente do componente político e ideológico. Tem vezes que você percebe que está fazendo a coisa certa, o resultado não vem e você vai ser criticado da mesma forma. Em uma sociedade polarizada e radicalizada como a nossa, isso [engajamento] aumenta o poder de pressão", explica.

Ainda assim, ele não acredita em um retrocesso. "Já ouvi pessoas falando: 'as coisas não estão bem porque os caras são de esquerda, ficam discutindo racismo'. Sempre vai ter alguém que vai buscar um ganchinho para poder aumentar a crítica e o tom da cobrança. Mas não podemos recuar em função disso".

Fernando Roberto/Mirassol Fernando Roberto/Mirassol

Sobrevivendo ao inferno

Cobrança foi algo corriqueiro na Ponte Preta em 2020. Um início ruim de Campeonato Paulista fez com que o clube fosse para a paralisação causada pela pandemia da covid-19 com chances reais de rebaixamento. Para piorar, no último jogo antes da pausa, perdeu de virada para o Guarani.

"A gente teve que recorrer a tudo depois da paralisação. Teve muito Racionais no vestiário da Ponte Preta. Sei que o Mano Brown é santista, mas ele falou que a mãe dele gostava da Ponte Preta", brincou.

O intervalo de quatro meses fez bem à Ponte Preta. A equipe venceu os dois jogos que faltavam na fase de grupos e, além de evitar o rebaixamento, conseguiu a classificação para o mata-mata do Paulistão.

"No último jogo da fase de grupos, o Ivan [goleiro] até brincou: 'o presidente sempre fala que os caras querem antecipar o nosso velório'".

Os quatro meses "sobrevivendo ao inferno", como diriam os Racionais, deram dor de cabeça a Tiãozinho dentro da própria casa. "Meu filho Hugo ficou bravo comigo esse tempo todo porque perdemos o dérbi. Só voltou a fazer as pazes depois que vencemos os dois últimos jogos".

O que parecia caminhar para uma campanha trágica acabou virando esperança de título. Depois da improvável classificação, a equipe campineira ainda eliminou o Santos nas quartas de final. Mas não teve a mesma força contra o Palmeiras, que acabou vencendo o confronto e, mais tarde, sendo campeão paulista.

Fernando Moreno/AGIF Fernando Moreno/AGIF

Volta do futebol foi precipitada

O Campeonato Paulista ficou parado por mais de quatro meses. O retorno da competição no fim de julho aconteceu depois de a CBF já ter anunciado que o Brasileirão iniciaria no começo de agosto. O curto espaço de tempo foi visto por Tiãozinho como uma pressão aos clubes.

"A volta foi uma antecipação. Quando a CBF determinou que os campeonatos das Séries A e B deveriam começar nos dias 8 e 9 de agosto, ela jogou uma pressão nos campeonatos estaduais. Nós tivemos que antecipar esse calendário. Não houve tempo hábil para um processo de adequação".

O clube campineiro chegou a se colocar contrário ao retorno do Paulistão na reunião virtual entre os times participantes. Depois, recuou e concordou com a retomada em 22 de julho. "A Ponte Preta defendeu desde o início que nós deveríamos suspender o campeonato, que deveríamos voltar com segurança, com um protocolo, apesar de todo impacto econômico que os clubes estavam sofrendo".

O impacto econômico resultou em um acordo do clube com os jogadores. Com uma folha salarial de pouco menos de R$ 2 milhões, a Ponte acertou a redução de parte dos direitos de imagem dos atletas e um atraso no pagamento do restante, segundo Tiãozinho.

"O primeiro critério que a Ponte Preta adotou era de não penalizar aqueles que ganham menos. Quem estava enquadrado no teto do INSS, que na época estava próximo de R$ 6 mil, não foi atingido por nenhuma medida de redução de custo. Também não alteramos nenhuma cláusula da CLT, seja para atletas ou funcionários. Todos seguiram com seus direitos assegurados".

Para a disputa da Série B, a Ponte Preta teve um reforço que não pôde contar no Paulistão: o Moisés Lucarelli. A cidade de Campinas entrou na zona amarela do "Plano São Paulo", do governo paulista, e foi liberada para receber jogos da competição.

Em casa, o clube campineiro tenta voltar à elite nacional, algo que não consegue desde o rebaixamento em 2017. Até lá, Tiãozinho segue com o sonho de ver outros presidentes negros.

Estamos provocando uma reflexão muito forte dentro da Ponte Preta sobre pluralidade, diversidade e combate a toda forma de preconceito e discriminação. Quero aproveitar minha passagem aqui para fortalecer essas convicções, para que elas possam ser apropriadas pela nossa direção, nosso conselho, nossa torcida.

Tiãozinho

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