Brasil busca o hexa na sede mais controversa da história das Copas do Mundo
Eder Traskini, Igor Siqueira, Lucas Musetti, Pedro Lopes e Thiago Arantes*
Do UOL, em Doha, Barcelona e São Paulo
20/11/2022 04h00
Classificação e Jogos
A Copa do Mundo de 2022 terá seu início oficial hoje (20), a partir das 13h (de Brasília), quando a bola rolar pela primeira vez em Qatar x Equador. O pontapé inicial vai marcar o começo de um torneio tão histórico quanto polêmico: pela primeira vez, um Mundial é sediado por um país muçulmano no Oriente Médio, em meio a críticas intensas da imprensa ocidental e reação indignada das autoridades locais.
Desde que foi escolhido como sede oficial da Copa em 2010, em um processo marcado por denúncias de corrupção e venda de votos na escolha do país como palco do torneio mais importante do futebol, o Qatar entrou nos holofotes da imprensa europeia. Em foco, as más condições de trabalho oferecidas aos imigrantes, apontadas como análogas à escravidão, restrições a liberdades individuais e a direitos de mulheres e LGBTQIA+.
A Copa de 2022 no Qatar tem suas particularidades: pela primeira vez, o Mundial ocorrerá praticamente inteiro no perímetro de uma cidade, um raio de 30 km ao redor de Doha, capital do país. Também será inédito que tudo acontecerá em um palco com restrições ao consumo de bebidas alcoólicas, a alguns tipos de vestimentas e a demonstrações públicas de afeto.
Dentro de campo, há muito a ser discutido: o Brasil chega embalado depois da melhor campanha da história das eliminatórias Sul-Americanas e com ascensão de jovens jogadores como Vini Jr. Neymar vive grande fase no PSG e é o principal garoto-propaganda do Mundial. Nos rivais, Cristiano Ronaldo (Portugal) e Messi (Argentina) se preparam para a última dança em Copas.
Corrupção e desrespeito a direitos humanos no holofote
A escolha pelo Qatar como sede da Copa do Mundo 2022 é questionada desde sua origem, em 2010, com suspeitas de venda de votos por parte dos membros do Comitê Executivo da Fifa, seja por meio de dinheiro direto ou favorecimentos. Na principal denúncia, uma ex-assessora da candidatura do Oriente Médio afirmou que três dirigentes africanos (Issa Hayatou, Amos Adamu e Jacques Anouma) trocaram seus votos por US$ 1,5 milhão cada para as federações.
Além disso, os votos do Brasil, França e do presidente da Concacaf, Jack Warner, também estiveram sob suspeita. Enquanto isso, a avaliação do grupo técnico apontava o Qatar como a pior candidatura para 2022. O relatório investigativo feito por um ex-membro do FBI, Michael Garcia, no entanto, não apresentou dados conclusivos sobre subornos por parte do Qatar. Com isso, não houve nenhum movimento da nova diretoria da Fifa para retirar a Copa do Qatar.
Depois da escolha, o país passou a aparecer nos holofotes acusado de manter trabalhadores em condições desumanas, análogas à escravidão. Órgãos como Anistia Internacional e a Human Rights Watch publicaram, periodicamente, relatórios apontando que trabalhadores tinham seus salários retidos, moravam em alojamentos precários, sofriam problemas de saúde e até morte por causa das altas temperaturas. O jornal britânico Guardian publicou que 6500 trabalhadores morreram no Qatar desde a definição do país como sede da Copa, um número refutado pelas autoridades locais.
Nos últimos anos, o Qatar acenou com uma caminhada rumo à moderação — há dentro do próprio governo do país um embate entre forças conservadores e alas mais progressistas. A organização da Copa enfatizou que a população LGBTQIA+ era bem-vinda para assistir e participar da Copa, e criou algumas exceções para o consumo de álcool, proibido para os muçulmanos.
Mesmo assim, as críticas da imprensa europeia não diminuíram, e alimentaram o ressentimento no país. Na reta final antes da Copa, em uma guinada conservadora, o Qatar baniu a cerveja que seria servida no entorno dos estádios nos dias de jogos, surpreendendo a Fifa e mostrando os limites de sua disposição em ceder nos seus costumes.
"As críticas pela Copa do Mundo são hipócritas. Pelo que nós, europeus, fizemos durante os últimos 3.000 anos deveríamos pedir perdão pelos próximos 3.000 antes de dar lições de moral aos outros. Estas lições de moral são simplesmente hipocrisia" Gianni Infantino, presidente da Fifa, desabafando contra críticas à Copa do Qatar
Sociedade patriarcal que ainda não libertou população LGBTQIA+
Em uma primeira análise superficial, o Qatar mostra ares progressistas, principalmente se considerada sua posição no Oriente Médio tradicional muçulmano. Mulheres exercem as mais diversas profissões — compõem 37% do mercado de trabalho. Hoje, já há no país mais mulheres com diplomas universitários do que homens. A impressão, entretanto, não sobrevive a uma análise mais profunda.
Segundo relatório divulgado pela Humans Rights Watch, mulheres solteiras de menos de 25 anos são tratadas como dependentes e precisam de autorização de um tutor masculino para viagens para fora do país — há até aplicativos destinados para esse processo. Também é necessária autorização de um homem para o casamento. Também é frequentemente exigido delas um documento de um homem próximo para que assumam vagas de trabalho — isso é chamado de "certificado de não objeção"
"Tudo o que eu tenho que fazer está ligado a um homem", Noora, jovem qatari de 20 anos, à Human Rights Watch
A população LGTBQIA+ também convive com restrições. Pela legislação do Qatar, homossexualidade masculina é passível de até três anos de prisão — para muçulmanos, existe até a previsão de pena de morte (não há registro de nenhuma ocasião na qual ela tenha sido aplicada).
Há o contraste entre o discurso oficial da Copa do Mundo, de que todos são bem-vindos no país, e a postura de algumas das autoridades locais. Em entrevista no último dia 8 de novembro, o embaixador da Copa do Mundo de 2022, Khalid Salman, disse que a homossexualidade é um "problema mental".
"No país, os LGBTs são vencidos pela cultura homofóbica, vivem no fundo do armário, pois têm medo ou estão no exílio", Nas Mohammed, médico qatari de 35 anos.
Dentro de campo, Brasil chega com força na briga pelo hexa
A preparação do Brasil para a Copa do Qatar foi excelente em termos de resultado. O Brasil bateu o recorde de pontuação nas Eliminatórias Sul-Americanas ao conquistar 45 pontos em 17 jogos —mesmo com uma partida a menos devido à confusão no duelo contra a Argentina que acabou cancelado.
No total, a seleção fez 50 jogos no ciclo para a Copa de 2022. Foram 37 vitórias, dez empates e somente três derrotas. A equipe de Tite marcou 111 gols —com 26 jogadores diferentes— e sofreu 19. Em apenas 17 jogos o Brasil foi vazado: foram 33 partidas sem sofrer gols.
No entanto, mesmo com excelentes números, o Brasil pareceu mudar de patamar após a chegada dos jovens a quem Tite se refere como "perninhas rápidas". Se antes a seleção de Tite vencia, mas não convencia, a chegada de Vini Jr, Raphinha, Rodrygo e Antony mudou tudo.
Com o crescimento de Lucas Paquetá e o sucesso no novo posicionamento de Neymar, que deixou de ser ponta após o advento dos "perninhas rápidas", a seleção de Tite encontrou uma das coisas que ele mais buscava durante o ciclo: variação tática.
Hoje, o Brasil pode atuar com um centroavante ou sem, pode jogar com dois volantes ou apenas um, tem opção até mesmo para o caso de Neymar não estar disponível. Ao que parece, o time de Tite nunca esteve tão bem preparado quanto para a Copa do Qatar.
Personagens da seleção
Tite
O treinador chega para sua segunda Copa consecutiva. Com um trabalho ininterrupto, é algo que só Zagallo conseguiu na virada de 1970 para 1974. Será a "última dança" dele com a seleção, independentemente do que acontecer, pois já decidiu deixar o cargo. Com Tite, o Brasil passou por momentos de oscilação depois do Mundial da Rússia, ganhou uma Copa América e perdeu outra, em casa, diante da Argentina. Mas as Eliminatórias foram tranquilas. Ao longo do ciclo, ele testou variações táticas na seleção brasileira, que chega com duas plataformas de jogo bem consolidadas ao Mundial.
Neymar
Pode ser a última Copa do Mundo dele, segundo o próprio. Até por isso Neymar chega a esse Mundial com apetite. O craque começou mais cedo a preparação física --antes de a pré-temporada pelo PSG começar-- e se mostra um líder dentro da seleção brasileira. Ele tem o papel de ser o elo entre os jovens e o bloco mais experiente. Tecnicamente, Tite o quer como organizador do time, atuando de forma centralizada, gerando ocasiões e tendo oportunidades de marcar também. O Neymar que chega ao Qatar é mais meia do que atacante.
Vini Jr.
É o melhor brasileiro na Europa, segundo eleição da revista France Football. Chega com o respaldo de ter feito o gol do título do Real Madrid na Liga dos Campeões, mas ainda precisa se consolidar em todas as variações táticas da seleção brasileira. De todo modo, é um dos representantes da ala jovem da seleção que aumentaram a dose de "magia" no futebol apresentado pela equipe brasileira.
Uma Copa chave para o maior jogador brasileiro da última década
Neymar disputará no Qatar a sua terceira Copa do Mundo. E, pela terceira vez, como a principal referência da seleção brasileira. A expectativa, agora, é começar e terminar o torneio com saúde. O camisa 10 chega ao Mundial em grande fase: são 15 gols e 11
assistências pelo PSG. O melhor início de temporada na Europa.
A primeira Copa de Neymar, em 2014, acabou com uma fratura na coluna, provocada pelo colombiano Zuñiga, nas quartas de final. Na segunda, em 2018, o atacante quebrou o quinto metatarso do pé direito e não chegou à Copa nas melhores condições.
Aos 30 anos, 121 jogos e 75 gols com a seleção, Neymar está perto de superar o recorde de Pelé. Segundo a Fifa, o Rei tem 77 gols oficiais pela amarelinha. Como o UOL Esporte mostrou recentemente, o recorde de Pelé é algo que Neymar considera ao mesmo tempo uma conquista e um fardo.
Ele evita tocar no assunto. Quando disse que "vai ser uma honra passar o Pelé", a frase deu início a uma polêmica na internet. Neymar foi acusado de falta de empatia com o Rei que, naquela época, estava no hospital.
O sonho do hexa e a possibilidade de bater recordes podem ocorrer na última Copa do Mundo de Neymar. O astro já falou em mais de uma entrevista sobre a chance de não estar à disposição em 2026. A decisão final ainda não foi tomada.
A Copa do Qatar também pode recolocar Neymar na briga pelo prêmio de melhor do mundo. Em ano de Copa, o torneio tem um peso enorme em qualquer votação. Com uma marca estimada em R$ 1 bilhão e seu rosto em todos os lugares do Qatar, Neymar tem a chance de alcançar três feitos de uma só vez: ser campeão, melhor do mundo, e ainda superar o Rei Pelé.
Seleção em longo jejum tem rivais ameaçadores
A Copa 2022 marca os 20 anos do pentacampeonato da seleção brasileira. E também duas décadas sem um título de uma nação sul-americana. Um jejum que pode estar perto do fim: Brasil e Argentina saem como favoritos, tanto nas casas de apostas quanto nas opiniões de treinadores e jogadores de outras seleções. De quebra, ainda parecem ter o apoio de muitos estrangeiros que viajaram ao país para o Mundial, como indianos, em grande número no Catar.
Maiores rivais da seleção brasileira, os argentinos lutam pelo tricampeonato (1978 e 1986) e chegam a esta Copa em um clima diferente das edições anteriores. A pressão de não ganhar títulos deixou de existir após a conquista da Copa América de 2021, em pleno Maracanã. É com esse time mais leve que a Argentina lutará para dar um título mundial a Lionel Messi, que disputará o torneio pela quinta (e última) vez.
Se a América do Sul apresenta Brasil e Argentina como seus favoritos, a lista de europeus na disputa pela taça é mais ampla. A começar pela França, atual campeã. Com Kylian Mbappé como principal estrela, a equipe de Didier Deschamps chega à Copa com quatro baixas importantes: Karim Benzema, Presnel Kimpembe, N'golo Kanté e Paul Pogba, todos titulares, foram cortados por lesão. Ainda assim, a quantidade de bons jogadores de alto nível joga a favor dos bicampeões. Aurélien Tchouaméni, do Real Madrid, é um candidato a revelação da Copa por desempenhar funções que podem fazer o torcedor francês esquecer de Pogba e Kanté.
Campeãs em 2010 e 2014, respectivamente, Espanha e Alemanha são rivais no Grupo E e apresentam seleções jovens, renovadas e pouco badaladas. Os espanhóis têm como destaques os meio-campistas Pedri, 19, e Gavi, 18, ambos do Barcelona, em uma lista com outros 20 estreantes em Copas. Já os alemães apostam na base do Bayern de Munique, com sete convocados, para buscar o penta. Em um time sem grandes destaques individuais, a referência é Joshua Kimmich, que dita o ritmo no meio-campo. Os germânicos ainda se blindaram no noroeste do país, em um resort de luxo com isolamento e tranquilidade que lembra o Campo Bahia, onde o time teve sucesso em 2014.
Depois de bater na porta da final em 2018, a Inglaterra surge como candidata e se beneficia do crescimento da Premier League nos últimos anos. Dos 26 convocados, 25 jogam na liga local, e o técnico Gareth Southgate teve problemas para fechar a relação, pelo excesso de opções. Harry Kane é o capitão e a esperança de gols, agora ajudado por Phil Foden. No meio-campo, a dupla formada por Declan Rice e Jude Bellingham é candidata a revelação do Mundial.
Além das quatro campeãs históricas —a Itália caiu na repescagem—, Bélgica e Dinamarca também se apresentam como candidatas. Depois de eliminar o Brasil em 2018, os belgas não conseguiram renovar a seleção, mas têm a seu favor o fato de manter uma base sólida. A boa campanha vai depender da forma de Eden Hazard e Romelu Lukaku, ambos em nível mais baixo que na Rússia. De Bruyne, por outro lado, continua em alta e é um meia ainda mais perigoso. Já os dinamarqueses aparecem como candidatos a surpresa pela boa campanha na Eurocopa, quando foram semifinalistas. Em um time sem muitas estrelas, o destaque é Christian Eriksen, meia do Manchester United.
A última dança das lendas Messi e Cristiano Ronaldo
Capitão e líder nos dois únicos títulos da história da seleção portuguesa, a Eurocopa de 2016 e a Liga das Nações de 2019, Cristiano Ronaldo chega ao Qatar em baixa e rodeado de polêmicas. Dentro e fora das quatro linhas. Um cenário raramente visto numa trajetória praticamente imaculada, dos tempos de resiliência nas categorias de base do Sporting aos diversos momentos de glória no Real Madrid.
A caminho da quinta Copa do Mundo, o craque há meses é contestado na equipe dirigida por Fernando Santos. Já não tem a explosão de antes e acaba por sobrecarregar os companheiros, que, quando estão mais soltos, costumam apresentar um futebol mais atraente e ofensivo, digno de uma das gerações mais ricas da história de Portugal, com Rúben Dias, João Cancelo, Bernardo Silva, Bruno Fernandes, entre outros.
No Manchester United, a situação do maior nome de todos os tempos do esporte português é pior. Não participou na pré-temporada, colecionou problemas de indisciplina e, um dia antes da apresentação oficial da seleção (14 de novembro), viu ser publicada no Reino Unido uma bombástica entrevista, onde, entre outras revelações, diz que não respeita o treinador holandês Erin ten Hag e se sente traído pelos dirigentes do clube.
Na Argentina, Lionel Messi anunciou em outubro deste ano que a Copa de 2022 vai ser a sua última. Aos 35 anos, estava com crédito de sobra para jogar tamanha bomba no mundo do futebol. Em 2021, depois de anos e anos de tentativas frustradas, conseguiu enfim um título pela seleção argentina: a Copa América, diante do arquirrival Brasil, em pleno Maracanã. Pouco meses depois, voltou a soltar o grito de campeão, com a conquista da Finalíssima, diante da Itália, em Wembley.
Sob o comando de Lionel Scaloni, Messi tem jogado em alto nível (dez gols nos últimos cinco jogos, por exemplo) e assumiu com maestria o papel de líder do vestiário, tendo deixado de ser "apenas" o centro das atenções em campo. Virou voz ativa no grupo e, principalmente, caiu de vez nas graças do apaixonado e exigente público argentino, que durante alguns anos sentiu uma certa "fria distância" entre eles.
A fase no PSG também é das melhores. Após uma primeira temporada de altos e baixos e a identificação ainda muito forte com o Barcelona, onde jogou desde os 13 anos de idade, o craque hermano cresceu de rendimento com a contratação do treinador francês Christophe Galtier, assim como os companheiros Neymar e Mbappé. Tem sofrido com alguns problemas físicos, entre eles uma inflamação do tendão de Aquiles, mas não chega a ser nada grave.
O caminho do Brasil até a final
No caminho para o hexa, o Brasil já tem um grupo considerado "complicado" pelo técnico Tite. A chave G tem Camarões, Sérvia e Suíça. O time africano é elogiado, mas os principais rivais são os europeus.
Se avançar às oitavas de final, a seleção brasileira deve enfrentar uma pedreira. Portugal e Uruguai são os favoritos do Grupo H, que ainda conta com Coreia do Sul e Gana. Nas quartas, os adversários mais prováveis são Espanha, Alemanha, Bélgica ou Croácia. Em 2018, o Brasil caiu para os belgas justamente nas quartas de final.
A lista de possíveis adversários na semifinal é extensa, mas o Brasil pode encarar seleções como Argentina, França, Holanda e Inglaterra. Se Brasil, Inglaterra e França terminarem em primeiro em seus grupos, o Brasil ficaria de um lado da chave e Inglaterra e França do outro. Com isso, o time canarinho só poderia enfrentar uma dessas seleções em uma possível final. Uma sonhada semifinal com a Argentina tem chance de ser a "final antecipada" da Copa.
* Colaboraram Diego Garcia, Rodrigo Mattos e Thalita Galucci
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