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Renato Mauricio Prado

Réquiem para o meu primeiro ídolo no futebol

Silva Batuta, ex-atacante de Flamengo, Corinthians e Vasco - Ricardo Borges/Folhapress
Silva Batuta, ex-atacante de Flamengo, Corinthians e Vasco Imagem: Ricardo Borges/Folhapress

03/10/2020 04h00

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Era o dia 3 de março de 1968. O Maracanã recebia mais de 80 mil pagantes para um amistoso de pré-temporada. De um lado, o Flamengo, que vinha de um péssimo ano, em 1967; do outro o espetacular Cruzeiro, que destronara (e destroçara) o poderoso Santos de Pelé, em dois jogos impressionantes na final da Taça Brasil de 1966 (6 a 2, no Mineirão, e 3 a 2, de virada, no Pacaembu). Era o Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes, Natal, Zé Carlos, Evaldo, Procópio e o jovem goleiro Raul, com sua inovadora camisa amarela. Antes da partida, os rubro-negros entregaram aos azuis as faixas de tricampeões mineiros.

A torcida rubro-negra, porém, tinha motivos de sobra para a empolgação. Estava de volta ao clube o seu maior ídolo nos anos de 1965 e 1966: Walter Machado da Silva, o camisa 10 que se transferira para o Barcelona e, como filho pródigo, retornava à Gávea, para devolver ao Mais Querido seus tempos de glória. Fora campeão carioca em seu primeiro ano (65) e vice no seguinte (66), formando com Almir, o explosivo Pernambuquinho, uma dupla infernal e inesquecível. Disputara a Copa de 66, na Inglaterra, como reserva de Pelé, mas fora escalado ao lado dele, na fatídica derrota para Portugal, por 3 a 1, que eliminou o Brasil.

Voltando a março de 1968, eu estava lá, nesse dia tão especial, sentado nas saudosas arquibancadas de cimento do então Maior do Mundo. Era garoto e fui à loucura com o primeiro gol do Batuta, abrindo o placar, após desferir, da entrada da área, uma bomba de canhota, que estufou a rede de Raul. Pulei tanto que deixei cair o meu radinho de pilha, que vi se espatifar, quicando degraus abaixo. E Silva ainda marcaria de novo, dessa vez de falta, batendo forte, aí com a perna direita. Numa goleada tão inesperada quanto empolgante, o Flamengo venceu por 5 a 1, com dois gols dele, dois do ponta-direita Luís Carlos e um de César Maluco (que voltava de um empréstimo ao Palmeiras).

O sonho dos rubro-negros, nascido naquela tarde inesquecível, porém, não se tornaria realidade na temporada. Culpa de um timaço do Botafogo que tinha, entre outros, Gérson, Jairzinho, Roberto e Paulo César - todos futuros integrantes da seleção de 70, que conquistaria o tricampeonato no México, dois anos depois.

Houve até uma frustração das mais doídas, com a perda da Taça Guanabara (então, uma competição à parte do Carioca), onde, na última rodada, o Flamengo precisava apenas de um empate com o Bonsucesso, para levantar o caneco e acabou surpreendentemente derrotado por 2 a 0, resultado que levou a decisão a um jogo extra com o Botafogo.

Parênteses: desse jogo inesquecível, que ouvi pelo rádio, lembro-me dos comentários do famoso radialista Ruy Porto que, na entrada do rubro-negro em campo, já o saudava como virtual campeão do torneio. A bola rolou, o tempo foi passando e nada do gol do Flamengo. Silva, nesse jogo, tinha como companheiro de ataque o folclórico e errático Fio Maravilha (jogador capaz de num lance lembrar Pelé e nos outros produzir bizarrices dignas dos piores pernas de pau). Aos 15 minutos, então, o baixinho Moraes abriu o placar para o Bonsucesso.

- A torcida rubro-negra nem precisa se preocupar. O Flamengo vai virar esse jogo logo, logo - disparou Ruy, tentando tranquilizar os rubro-negros.

O goleiro Ubirajara, contudo, estava em noite inspiradíssima. E por mais que os atacantes da Gávea o bombardeassem, a bola não entrava. Veio o segundo tempo e o Bonsuça seguia vencendo. E, lá pelos 30 minutos, Ruy Porto atacou de novo:

- O empate basta para o Flamengo ser campeão. O gol vai sair - insistiu.

Saiu, aos 44 minutos. Mas, novamente do Bonsucesso, novamente Moraes.

- E aí, Ruy? - provocou o locutor Waldyr Amaral.

- Aí ficou pra decidir na quarta-feira... - admitiu o constrangido comentarista.

E na quarta-feira, o Botafogo, que estava em excursão, pois não acreditava mais no título, voltou ao Rio e goleou impiedosamente o Flamengo por 4 a 1. Por conta disso, o Batuta não conquistou títulos em sua volta ao rubro-negro (no Carioca, acabaria em terceiro, atrás do Botafogo, novamente campeão e do Vasco). Ainda assim, marcou muitos gols no ano e seguiu tão ídolo como antes.

Silva morava perto da minha casa em Ipanema. E lembro-me até hoje da alegria que proporcionava à garotada, quando chegava na praia e, brincalhão, perguntava se podia participar do nosso jogo de duplas numa das balizas do campo de areia do Tatuis.

- Claro! - respondíamos, encantados.

E ele fazia embaixadinhas com a nossa bola "seleção de ouro", nos desafiava a fazer tabelinhas de cabeça com ele e chutava (devagar) para o goleiro defender com uma "ponte". Até os meninos que não eram rubro-negros ganhavam o dia com a brincadeira do simpático camisa 10 do Fla.

Após pouco mais de um ano, Silva se transferiu para o Racing da Argentina, onde também foi ídolo e artilheiro, deixando por aqui lembranças inesquecíveis no garoto que eu era, como um gol de cabeça no último minuto de uma partida duríssima com o Bangu, na estreia do Carioca daquele ano.

Silva era um exímio cabeceador, chutava forte e bem com as duas pernas, fazia gol de bicicleta e tinha uma matada no peito só comparável a de Pelé (e, posteriormente, a de Cláudio Adão). Viesse de onde viesse a bola, com a força que fosse, ele abria os braços e ela se aninhava no seu tórax, submissa, descendo já na medida para o chute perfeito.

O Batuta foi tão amado pelos rubro-negros que nem mesmo quando voltou ao futebol brasileiro para jogar no Vasco, onde foi campeão carioca, em 1970, e, posteriormente, no Botafogo, já em final de carreira, deixou de ter o carinho e o reconhecimento da maior torcida do Brasil.

Depois de encerrar a carreira, se tornou "olheiro" do Flamengo (garimpava talentos) e, por fim, humilde funcionário na Gávea, onde cuidava de eventos na sede social, como casamentos, batizados e festas de formatura. Teve dois filhos (Wallace e Waltinho) que chegaram a jogar na base rubro-negra, mas nenhum dos dois se firmou no profissional.

Morreu no último dia 29, aos 80 anos (dizem, vítima da Covid-19), levando com ele boa parte da minha infância e juventude, em que o tive como o primeiro grande ídolo no futebol. Descansa em paz, campeão e muito obrigado pelas alegrias que me deu. Nunca o esquecerei.