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ReportagemEsporte

Abalado, Anderson busca forças para ser rosto contra homofobia no esporte

Anderson Melo estava em uma loja de artigos religiosos, esta semana, quando uma pessoa o reconheceu e pediu para lhe dar um abraço. Número 50 do ranking nacional do vôlei de praia, ele jamais havia se imaginado reconhecido na rua, ainda mais por algo que não queria ter passado: um caso de homofobia no esporte.

A manchete da história ganhou o país: ele jogava a preliminar de um torneio nacional em Recife, em 14 de março, enquanto torcedores o ofendiam com gritos homofóbicos. O caso só veio à tona porque o próprio Anderson o expôs nas redes sociais, mais de 12 horas depois.

De uma hora para outra, Anderson, que se assumiu gay para a sociedade aos 15 anos, passou a ser o rosto de uma causa: o combate à homofobia no esporte. E, desde então, tem lidado com essa responsabilidade jogada no colo dele pelos agressores.

Ainda traumatizado, pediu demissão de um dos empregos que tinha como professor de vôlei de praia, por falta de forças. Mesmo assim, volta à quadras hoje (4), no Open de Saquarema (RJ), na casa da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), entidade que ele acusa de ter sido omissa por não ter impedido as agressões que se estenderam contra ele por um jogo inteiro.

A confederação alega que nem a árbitra do jogo nem dois guardas municipais conseguiram identificar, entre os não mais que 30 torcedores presentes, quais ofendiam Anderson. A partida não foi interrompida. À reportagem, a CBV citou uma série de medidas tomadas após a repercussão do caso (leia mais ao final do texto).

Quem é Anderson Melo?

Anderson é cria da comunidade de Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio de Janeiro. A mãe o apresentou ao vôlei, como espectador de jogos no bairro. Se interessou, jogou um torneio e foi chamado para o que depois se tornou o projeto social Evocar. "Esse projeto mudou minha vida, tanto pessoal quanto profissional. Tive a oportunidade de estudar em escolas particulares, fazer duas faculdades. Sou aquele menino que veio da favela e não sai de onde mora."

Entender Anderson, entender sua história, é importante para entender sua dor. No fatídico jogo, ainda convivia com a incerteza do retorno às quadras, após ser internado com uma lesão grave no tornozelo, e com o luto pela morte da mãe, sete meses atrás. Era nela que ele pensava durante os intermináveis 50 minutos de ofensa na partida contra Fabiano/Luizão.

"Teve um grito que me chamou de 'bicha' e falou 'Dá na cara dela, ela é mulher'. Isso me remeteu a quando eu contei à minha mãe que eu sou gay. Ela ficou abalada, ficou triste, balançou nossa amizade. Depois de um tempo ela falou que o problema dela não era com a minha sexualidade, mas como a sociedade iria me tratar, o que as pessoas poderiam fazer comigo. Ela via casos de agressão, já havia escutado histórias. Era o medo dela, e minha cabeça foi para esse momento."

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Entre as muitas pessoas que o escreveram depois do episódio, uma delas foi 'Dona Déa', mãe do humorista Paulo Gustavo, que marcou época brincando com a relação mãe x filho gay. "Eu senti como se minha mãe estivesse me abraçando".

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Imagem: Divulgação/CBV

Origem das ofensas

O crime ocorreu em um jogo de primeira fase de um 'Aberto', torneio de segundo escalão que costuma ter quase nenhum público, às 11h30 de uma quinta-feira. Mas aquela partida tinha como atração a presença do local Fabiano Melo, 48, dono de um centro de treinamento na cidade, na Praia de Boa Viagem, e que estava de volta às quadras como jogador depois de uma década.

"As pessoas que estavam naquele momento eram torcedores do Fabiano. O meu jogo seguinte foi na quadra 3, e ele na 2, ao lado. A mesma torcida estava com ele na 2", diz a vítima.

A reação de Anderson foi surpreendente para quem o conhece. Ele não reagiu. Não foi para cima, não rebateu. Reclamou com a arbitragem e chorou o jogo todo. "Me machucou muito dentro de quadra. Eu não tinha forças para sair de quadra, não tive forças para fazer o BO no dia. A única coisa que eu queria era sair dali. Não foi um minuto, não foram dois minutos. Foram 50 minutos."

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Omissão

Às 2h da manhã de sexta-feira, ele ainda chorava, conversando com Maria Elisa, ex-jogadora, comentarista do SporTV e proprietária do CT onde dá aula no Rio. "Anderson, você está machucado, você está chorando, mas precisa entender que o que você passou é crime e outras pessoas no Brasil passam por isso diariamente. Você precisa ter força para você ser a voz disso", disse Maria Elisa, convencendo-o a denunciar o caso no Instagram.

Até então, mais de 12 horas depois, a CBV não havia tomado nenhuma atitude, segundo ele.

"Eu vejo como uma grande parte de omissão, principalmente da CBV. Nós tivemos reuniões, eu escutei muitas coisas, falei muitas coisas, falei que eles foram muito omissos comigo. Olhei na cara do Guilherme [Marques, gerente de competições de vôlei de praia] e falei: 'Você só entrou em contato comigo sábado, 13h, depois que eu fiz a postagem'. Ele só abaixou a cabeça. Foram 50 minutos, 50 minutos dá para salvar uma vida. A polícia falou que bastava uma ligação e eles estariam lá em 3 minutos".

A polícia militar, porém, não foi chamada, e não foi por falta de alertas. Lipe, ex-parceiro de Anderson, que jogava na quadra ao lado, chegou ameaçar sair do jogo dele se algo não fosse feito. "No segundo set os organizadores estavam na quadra ao lado, e depois vieram dizer que não estavam identificando os gritos. Devia ter entre 20 e 30 pessoas no jogo. Eles podiam ter gravado, parado jogo, gritado, chamado a segurança, segurado todo mundo até a chegada da polícia, mas não fizeram nada", conta Anderson.

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Segundo o jogador, na delegacia, representantes da CBV disseram que seria fácil a polícia reconhecer os agressores, porque a arquibancada estava vazia. "Como olha para a minha cara e diz que não consegue identificar, depois vai diante da polícia e diz que é fácil identificar? Por que eles não identificaram, então?"

Procurada para comentar o caso, a confederação relatou o seguinte: "No intervalo entre o primeiro e o segundo set, a árbitra da partida foi alertada sobre o fato. Chamou então o delegado técnico do evento, que solicitou reforço na segurança, com a presença de dois representantes da Guarda Municipal. Na parte final do segundo set, foi possível novamente ouvir ofensas vindas da arquibancada, mas nem a árbitra e nem os integrantes da Guarda Municipal presentes conseguiram identificar os autores."

Após a repercussão do caso, as duplas finalistas do torneio entraram em quadra carregando faixas com os dizeres "Homofobia é crime" e "Anderson Melo, essa luta é de todos!". Também foi lida uma mensagem de conscientização antes das partidas: "Atenção, torcedores! Racismo, homofobia e outros atos discriminatórios são crime, e não podem fazer parte dos eventos do voleibol brasileiro."

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Imagem: Divulgação/FIVB

Ainda dói

O trauma, porém, ficou. Na terça (1), um dia antes de atender o Olhar Olímpico, Anderson teve quatro crises de choro/ansiedade e pediu demissão de um trabalho como professor de vôlei de praia. "Estou carregando todas as coisas. Está sendo difícil treinar. Sabe quando você está ali, mas parece que você não está?"

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Ele só está de pé graças ao carinho que recebeu de muita gente. "Eu recebi muito apoio, muito amor. Eu estava muito perdido, estou ainda. A Maria [Elisa] fez um café da manhã com os alunos contra a homofobia. Se estou de pé é pelo apoio que recebi das pessoas. Não só dos meus alunos, mas de pessoas que admiro, de pessoas que nunca vi na vida, de pessoas que se sentem representadas. O que mais tem no meu Instagram é mensagem de mães que imaginaram seus filhos passando pelo que eu passei."

Anderson entendeu que havia recebido limões e, com eles, precisava fazer uma limonada. Não escolheu ser porta-bandeira de uma causa, mas, uma vez colocado ali, tem nas mãos a possibilidade de mudar as coisas.

"Eu pedi pra polícia: por favor, resolva esse caso, para que as pessoas que são vítimas entendam que a lei está ali para proteger, e o agressor entenda que 'brincar' sobre sexualidade da outra pessoa é crime, é grave, não pode ser feito. É o sentimento que eu carrego, estou botando na frente dessa causa, para que outros Andersons que são agredidos, violentados, que sofrem homofobia e sofrem calados, que eles saibam que a lei está ali para proteger a gente. Tenho certeza absoluta que vai dar certo."

O que diz a CBV

A confederação enviou nota ao Olhar Olímpico na qual detalha, entre outras coisas, as ações tomadas após o caso de homofobia:

Como entidade que notadamente repudia qualquer tipo de preconceito, a CBV se mobilizou para apurar os fatos, reviu as imagens da partida, se reuniu com os envolvidos (atletas, arbitragem, delegado e supervisora de arbitragem), e recolheu todas as informações necessárias, incluindo os relatórios da árbitra de partida e do delegado técnico da competição.

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No sábado, 16/3, a CBV prestou queixa e procedeu com o devido registro de ocorrência na Delegacia de Polícia da 7ª Circunscrição, em Boa Viagem.

A CBV também fez o encaminhamento do ocorrido ao Ministério Público local e ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Voleibol, para que sejam tomadas todas as medidas legais cabíveis. A CBV está acompanhando os desdobramentos do caso e não medirá esforços para que os responsáveis sejam identificados e punidos.

No domingo, dia 17/3, data das finais da competição, a CBV fez uma ação de conscientização e de apoio a Anderson Melo, com a participação dos atletas. As duplas que jogaram naquele dia entraram em quadra com faixas com os dizeres "Homofobia é crime" e "Anderson Melo, essa luta é de todos!". As faixas foram levadas ao pódio durante a cerimônia de premiação. O próprio Anderson agradeceu as ações em comentário nas redes sociais da CBV.

Na quinta-feira, dia 21/3, a CBV retornou à delegacia em Recife levando novas evidências, incluindo imagens, fotos e relatos que podem auxiliar na identificação de suspeitos. A CBV entende que, com isso, os responsáveis pelo caso têm relevantes evidências para identificar os responsáveis pelos atos homofóbicos.

Desde que os fatos foram apurados, a CBV mantém permanente contato com o atleta por meio de seu presidente, do Diretor de Relações Institucionais e do gerente de competições de vôlei de praia da CBV. Foram diversas conversas presenciais, por telefone e por aplicativo de mensagem. Anderson inclusive esteve na sede da CBV, na Barra da Tijuca, para uma reunião presencial, da qual participou o presidente da Comissão de Atletas de Vôlei de Praia. A CBV também ofereceu apoio psicológico ao atleta, e quando Anderson manifestou o desejo de continuar com a profissional que o atendia, a CBV se prontificou a arcar com os custos das consultas. A pedido de Anderson, a CBV arcou com os custos da viagem do presidente da Comissão de Atletas de Vôlei de Praia à etapa de Saquarema do Circuito Brasileiro, para que este desse suporte ao atleta durante a competição.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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