Milly Lacombe

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É só uma coletiva de imprensa, Brasil

Leila Pereira chamou um corpo jornalístico composto apenas por mulheres para a primeira coletiva do ano. Assim que a notícia foi dada, a gritaria começou. Alguns se sentiram ofendidos, excluídos, deixados de lado.

Antes de elaborarmos a iniciativa da presidente do Palmeiras, e as reações a ela, seria fundamental dar o contexto.

E o contexto é: trata-se apenas de uma coletiva, Brasil.

Seria o caso de cada um de vocês que se sentiu magoadíssimo pelo fato de Leila ter convidado apenas mulheres se perguntar por que ficou tão indignado dado que é apenas uma coletiva de imprensa e não o fim do mundo.

Uma única reunião de duas horas no máximo em que vocês terão que olhar pelo buraco da fechadura e contar com a nossa perspicácia para fazer perguntas. Depois tudo volta ao normal. Vocês poderiam tentar se acalmar?

Por que essa histeria?

Ao buscarmos respostas para essa pergunta, Aí sim a coisa começa a ficar interessante.

Há veículos que não poderão ir à coletiva de Leila Pereira na terça.

Sabem por que? Porque não têm mulheres contratadas. Isso diz mais sobre a iniciativa de Leila ou sobre a sociedade em que vivemos?

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Olhar para Leila e pensar: "tá errado isso aí! " em vez de olhar para esses veículos e dizer:"talvez fosse hora de contratar mulheres" é, convenientemente, inverter a história.

Tem os que se sentem oprimidos e dizem que nunca antes as mulheres foram excluídas de coletivas então, portanto, não faz sentido excluir homens.

Esses colegas explicam em seguida que a questão, prestem atenção, era que mulheres não existiam nesse mercado, ou existiam em número pequeno, e portanto não estavam presentes nas coletivas. Compreendem?

Eles dizem tudo isso como quem decifra a vida com paciência para cada uma de nós. Explicam as camadas mais superficiais desse oceano de preconceitos acumulados como se fosse a coisa mais normal do mundo que tenha existido uma época em que mulheres não estivessem presentes.

Não se perguntam por que era assim, quanto de opressão estava envolvida na composição desse cenário, que tipo de violência levava à absoluta falta de mulheres no meio futebolístico. Era assim porque era assim e ponto final não vamos mais tratar disso que encheção. Agora mudou, não basta? Chatas!

Mas vejam: se as mulheres não são excluídas de coletivas formalmente, elas são excluídas desde que nascem.

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Não pode jogar bola, não pode narrar, não pode se meter nisso, não pode comentar, tem que brincar de boneca, tem que ser bela, recatada e do lar, não pode sai por aí pedalando sozinha, não pode andar sozinha à noite, não pode sair com essa roupa, não pode dar para qualquer um, não pode falar muito alto, não pode falar demais, aliás. Não pode, não pode, não pode.

Meu colega Renato Mauricio Prado acha que as mulheres já chegaram lá. Tem mulher narrando, comentando, reportando. Tá tudo certo então.

Eu argumentaria que não tá nada certo. Somos poucas, somos criticadas com sexismo, somos todos os dias agredidas com frases como: vai lavar louça e para de falar sobre futebol.

Até ontem havia no Brasil um ministério que trabalhava para meninas vestirem rosa e meninos azul. Havia um presidente que achava que mulher é fraquejada e que tem que ficar dentro de casa cuidando do marido.

Somos mortas, abusadas, estupradas, assediadas em números desumanos todos os dias. E os assuntos, para quem estiver a fim de pensar por trinta segundos sobre eles, estão sim todos relacionados. A mesma sociedade que diz que temos que ser belas, recatadas e do lar e que esperneia quando Leila chama apenas mulheres para uma coletiva é a que abusa e assassina nossos corpos - sobretudo no lar - diariamente.

Outra coisa importante: porque algumas de nós cruzamos fronteiras não quer dizer que os muros caíram. Eles não caíram.

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Mas, outra vez: é só uma coletiva. Por que tanto descontrole?

"Ah, mas é demagogia porque no Palmeiras trabalham mais homem que mulheres", dizem. Sim, meus alecrins. Se o Palmeiras e o mundo estivessem já com uma divisão meio a meio entre homens e mulheres a Leila não precisaria chamar essa coletiva. Ou Leila só poderia chamar uma coletiva exclusivamente feminina se o problema de gênero já estivesse resolvido?

Pausa para que o paradoxo seja assimilado.

E, igualmente importante, cobrar que depois de dois anos de mandato ela já tivesse resolvido todos os problemas de gênero do Palmeiras e do futebol é, além de perverso, bastante estúpido.

Aos homens de esquerda que estão apontando para o que veem como contradição eu recomendaria pensar sobre a seguinte pergunta: que outra mulher tentou resolver as coisas rápido demais no cargo de presidente e foi, com sua ousadia, defenestrada dali?

Homens bem resolvidos estão apoiando, achando bacana, interessante, inovador, histórico. Os berros dizem mais sobre quem berra do que sobre a coletiva de Leila.

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Vocês se escutam esperneando? Entendem que praticam aquilo que nos acusam de fazer? O tal do mimimi.

"Ah, mas ela está adotando políticas restritivas".

Não, meus amores, não está.

Vejam: ela estaria adotando políticas restritivas se dissesse que de agora em diante só daria entrevistas para mulheres.

Leila vai fazer essa coletiva feminina uma vez, uma única vez. É uma atitude inclusiva. Veículos de imprensa terão que olhar suas redações para ver as mulheres que ali estão - ou não estão.

Por favor, pensem por alguns instantes antes de sair por aí dando chiliques com argumentos tão pobres e por uma coisa tão simples, tão pontual, tão circunstancial.

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E talvez fosse hora de os homens que ficaram ofendidos se perguntarem o que exatamente estão sentindo. É ruim, certo? Vocês talvez nunca tenham sentido isso, imagino. É um sentimento novo esse da exclusão? Pensem sobre isso.

De qualquer forma, importante de novo lembrar que a coletiva de terça-feira durará duas horas e valerá pela simbologia. O resto do ano inteirinho seguirá sendo quase que exclusivamente de vocês. Não se preocupem tanto.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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