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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma posse, um funeral e um país que se vê no espelho

Caixão com corpo de Pelé é colocado no centro da Vila Belmiro - Marcelo Justo/UOL
Caixão com corpo de Pelé é colocado no centro da Vila Belmiro Imagem: Marcelo Justo/UOL

Colunista do UOL

02/01/2023 15h07

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Quem somos nós? Essa é uma pergunta capciosa. Nós somos muitas coisas, sem dúvida.

Somos um Brasil que pode ser careta, covarde e conservador.

Um Brasil que existiu pulsante desde o golpe em Dilma Rousseff.

Um Brasil que começou a ser construído com a invasão portuguesa, com a formação de uma oligarquia que enriqueceu com saques, explorações, escravizações, extermínios e violências.

Uma oligarquia que se perpetua no poder. Muito masculina, muito branca, muito cis-hétero-normativa, muito opressora.

Mas nós somos também a arte e a cultura das frestas.

Somos um drible bem executado, um tambor bem tocado, uma reza bem rezada.

Somos corpos encantados, espaços terreirizados.

Somos um samba bem sambado, uma capoeira bem jogada.

Somos Clarice, Pixinguinha, Carolina Maria de Jesus, Palmares, Jobim, Dandara, Marielle, Chico, Caetano, Gil, Gal, Bethânia.

Somos Chico Science, Chico Cesar, frevo e forró.

Somos Cartola, Lélia, Mangueira, Portela, Estácio.

Somos praias e cerrados. Sertões e chapadas.

Somos dona Canô, Olodum, Pelourinho.

Somos Amazônia, aldeias, etnias, línguas.

Somos Maracanã, Mineirão e Castelão.

Somos Mané e somos Pelé.

Somos pessoas que tentam se livrar de preconceitos, que pedem perdão, que querem respirar, existir e festejar.

Somos a cultura das periferias e das favelas.

Somos acolhimento, alegria e paixão.

Vimos um pouco do que somos subindo a rampa do Planalto com Lula.

É fundamental que possamos nos ver em situações de poder.

A invisibilidade é a forma que o dominador encontrou para nos silenciar. Quando nos vemos no espelho, e nos entendemos potentes, alargamos o campo do possível.

Pela primeira vez, pudemos subir a rampa com o presidente eleito.

É bastante coisa em uma só imagem.

Uma sociedade igualitária, ensina o professor Vladimir Safatle, reconhece as diferenças: "Reconhecer algo ou alguém não significa simplesmente tomar nota de sua existência. Antes, significa mudar estruturalmente quem reconhece, pois ao reconhecer outro que até então eu não reconhecia, algo de meu mundo se modifica, sou afetado por aquilo que até então me era inexistente, uma mutação estrutural do campo da experiência ocorre. Por isso, sociedades igualitárias são plásticas e em contínua mutação.

Estamos vendo a mutação bem diante de nossos olhos.

Tem um país enorme a ser descoberto. Um país que há 500 anos existe e resiste.

Vivemos um ritual de passagem de poder e um ritual de passagem de vida.

No primeiro, deixamos a opressão e recebemos a inclusão.

No segundo, nos separamos do corpo de um deus encarnado.

Um homem que, como todos nós, falhou, errou, tropeçou e acertou.

Deixamos ir o homem para dar lugar ao sagrado que se manifesta na arte dos campos, dos dribles, das gingas, dos gols, das arrancadas, dos milagres.

Pelé, o artista, mostrou o que podemos ser.

Deu sentido às nossas vidas. Mesmo que por instantes, o que já é coisa demais.

Sua morte convida a refletir sobre o que sentimos vendo um dos nossos ser reverenciado, celebrado, endeusado em cada canto desse planeta enorme.

O Brasil, essa imensidão, começa o ano mergulhado em rituais cheios de significados.

Um de vida, outro de morte mas ambos de recomeços: quem somos nós sem um rei encarnado e quem somos nós subindo a rampa para tomar posse.

Que sejam rituais que nos transformem e nos coloquem em um caminho de verdade, de afeto, de respeito e de amor.