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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Verdades e mentiras que a Copa do Qatar escancarou

Rosário - Messi - murais e lugares - mural messi prédio - Luciana Taddeo
Rosário - Messi - murais e lugares - mural messi prédio Imagem: Luciana Taddeo

Colunista do UOL

17/12/2022 17h18

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Termina a Copa do Mundo da ditadura do Qatar. O futebol, soberano, prevalece sobre as ruínas morais da Fifa, do absolutismo monárquico dos anfitriões, da censura a manifestações políticas, da ausência de mulheres e de pessoas LGBTQs.

Escrevo antes da final e espero que o time de Messi leve a taça.

Se for assim, essa terá sido a Copa de Messi e, aos mais crédulos, ficará a certeza de que existe um Deus que foi incapaz de deixar um dos três maiores da história se aposentar sem a taça.

Nada contra o escrete francês - au contraire -, mas tudo a favor desse gênio que eleva o futebol ao estado de arte e abre espaço para que o sagrado entre em campo.

Em tempos de protocolos tediosos, de DJs nos estádios, do controle sobre como devemos torcer, aparece a torcida argentina para dizer "pera lá que não é bem assim". Rompendo com o padrão de comportamento dos corpos domesticados nas arquibancadas, nossos vizinhos mostram como se faz.

Enquanto no Qatar eles convidam a gente a lembrar do que é torcer, na Argentina uma improvável história se apresenta como central: a da avó que vai às ruas com sua bandeirinha e faz circular afetos novos.

Se vencer, o título será de Messi e das avós argentinas. Que imensa a narrativa a que essa Copa está criando.

Sobre o Qatar, pouco ficamos sabendo.

Numa ditadura permite-se noticiar o que convém ao Emir.

Não se falou sobre a falta de direitos humanos, não vimos as cidades periféricas construídas por e para que os trabalhadores imigrantes não se misturem aos locais, nada se ruim foi noticiado sobre a família que comanda a ditadura.

Mas pudemos notar coisas que talvez estivessem escondidas sobre nós mesmos.

Ronaldo é oficialmente um magnata da bola, com tudo o que isso tem de ruim.

Os campeões do penta, convidados da Fifa e/ou do Emir para assistir aos jogos, se revelaram pessoas apequenadas de caráter e nos obrigam a fazer o ingrato exercício de separar o ídolo da pessoa.

Nossa seleção, como previsto pelos mais atentos, não teve uma liderança madura e, sem jogar nada de bola, foi eliminada muito antes do que gostaria a maioria.

A galera brasileira presente à Copa foi basicamente composta por uma start-up de torcida que desconhece o que seja apoiar autêntica e apaixonadamente uma camisa, protagonizando um espetáculo tão miserável quanto deprimente.

Percebemos claramente o que separa celebridade de herói, estando nosso camisa 10 no primeiro grupo e Messi no segundo.

Pela primeira vez, tivemos que juntar a melancolia do final de ano com a melancolia do final da Copa, um sentimento que normalmente a gente tinha seis meses para elaborar mas que esse ano, para acomodar as temperaturas menos cruéis do Qatar, não foi possível.

Por outro lado foi interessante levar a Copa a um país árabe e ver as populações árabes se sentindo em casa. A torcida do Marrocos e o time inteiro do Marrocos inauguraram emoções e sentimentos em todos e em todas nós.

No Qatar, o esporte nacional é sair para o deserto e soltar falcões. Os pássaros são treinados por especialistas e pertencem aos mais ricos. É sinal de status ter falcões e fazê-los performar nos céus do deserto. Há centenas de veterinários que são levados ao Qatar para cuidar dos falcões: é um negócio das arábias por lá.

Ao final da Copa, o país esquecerá o futebol e voltará a atenção exclusiva aos falcões. Isso, claro, falando dos locais.

A enorme população imigrante, mais de dois milhões de pessoas e quase a totalidade desse número composta por trabalhadores vindos de países vizinhos, gosta mesmo é de cricket.

O futebol e seus estádios suntuosos ficarão pelo deserto em busca de algum significado.

Como alguns dos elefantes brancos erguidos para a Copa do Brasil em 2014.

A Fifa faz uma magnífica fagocitose nos países que sediam o torneio.

Chega anos antes, cria embargos e leis, coloca suas exigências à mesa, lucra em parceria com uma pequena parcela de empresários e políticos com os quais se associa, e vaza deixando um rastro de ruínas e de espaços vazios.

Não houve de fato nenhuma grande transformação no futebol brasileiro depois de 2014 a não ser o aprofundamento da elitização. Para a população em geral, nada restou.

Não saberemos o que será do Qatar porque a monarquia absolutista não vai permitir que saibamos.

Mas o que ficará, especialmente em caso de vitória da Argentina, é o gosto doce da justiça poética.

O futebol, no final, segue vencendo. Mas até quando?