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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rebeca, Daiane, Aida e um passado que insiste em se presentificar

Colunista do UOL

29/07/2021 15h42

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Ninguém faz nada sozinho e o gesto de Rebeca Andrade ao colocar a medalha de prata no peito, apontar para o símbolo e rodar o dedo no ar como quem diz "essa é de vocês também" registra essa verdade. Rebeca não teria nos emocionado do jeito que emocionou se sua mãe - uma mãe-solo como tantas outras mães desse Brasil - não tivesse feito os sacrifícios que apenas ela sabe quais foram para que a filha pudesse treinar e chegar onde chegou.

Rebeca não teria feito história em Tóquio se, antes dela, Daiane e seu "Brasileirinho" não tivessem chacoalhado as estruturas do esporte. Rebeca não teria conquistado o topo do mundo se antes dela Aida dos Santos, a filha de um pedreiro e de uma lavadeira, não tivesse sido a única mulher na delegação que foi a essa mesma Tóquio para as Olimpíadas de 1964, ainda que sem uniforme, sem técnico, sem apoio, sem amparo. E, mesmo sem nada disso, ficou em quarto lugar no salto em altura e foi a primeira brasileira a chegar a uma final olímpica.

Essas são as histórias que nós da imprensa gostamos de contar de forma romântica, sempre com uma mensagem "olha quanta superação". E essas são as histórias que o capitalismo adora usar para reivindicar um de seus pilares, o da meritocracia, com a mensagem do "quem se esforça consegue". Para cada Aida, para cada Daiane e para cada Rebeca existe uma multidão de jovens que não conseguiu - mas essas histórias não fazem bem à imagem das instituições que tanto querem preservar.

A função do esporte não é inserir socialmente esforçados e qualificados. A função do esporte é lembrar a gente que, enquanto coletividade, podemos coisas que sozinhos jamais conseguiríamos. Esporte existe para construir subjetividades, e subjetividades a gente constroi justamente na nossa relação com o outro, com a alteridade, com aquilo que nos despossui, nos chacoalha e nos afeta de novas formas.

Inclusão vem com justiça social. A partir dela poderemos começar a pensar em categorias como a meritocracia. Com inclusão e justiça social seríamos o país de muitas Aidas, Daianes, Rebecas, Martas, Rayssas, Karens, Joannas. Com inclusão social narraríamos as histórias a partir da potência dos sujeitos e não a partir dos dramas e sofrimentos produzidos por nossos fracassos políticos, sociais e econômicos.

Temos um pacto com quem veio antes e um pacto com quem vem depois. Rebeca Andrade é uma gigante que se ergue sobre os ombros de outras gigantes como Daiane e Aida. Marta se ergue sobre Sissi; Rayssa sobre Karen Jonz, Joanna Maranhão servirá de ombro para novas gerações de nadadoras. Estamos ligadas por um passado que a cada nova conquista se presentifica e se atualiza.

É desse jeito que toda mulher que hoje luta por um mundo melhor está de mãos dadas a Rosa Parks, que no dia 1º de dezembro de 1955, em Montgomey, Alabama, se recusou a dar seu lugar no ônibus a uma pessoa branca, como mandava a lei. Rosa foi presa e sua prisão mobilizou reflexões a respeito de uma lei desumana. Foi por causa dessa ação que Parks inspirou gerações e potencializou a luta por direitos civis.

É através de pequenos gestos de coragem que pessoas mudam o mundo. Nem toda lei é justa e nem toda desobediência é delinquência. Que a medalha de Rebeca Andrade nos inspire a querer ser melhores e nos faça entender que estamos todos, todas e todes ligados de formas irreversíveis, nos afetando e nos transformando a cada instante.

Que a absurda prisão de Paulo Galo e Gessica Barbosa seja imediatamente revogada. Que estátuas que homenageiam predadores, genocidas, exterminadores e opressores queimem e caiam. Que esse país seja capaz de rever seu passado e, com isso, mudar seu futuro.