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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Comentarista diz que mulher narrando futebol é desrespeito

8.mar.2020 - Jovem pinta o símbolo de feminino no rosto no Dia Internacional da Mulher, em Londres, onde vários grupos feministas organizaram campanhas online em vez de sair às ruas  - Tolga Akmen/AFP
8.mar.2020 - Jovem pinta o símbolo de feminino no rosto no Dia Internacional da Mulher, em Londres, onde vários grupos feministas organizaram campanhas online em vez de sair às ruas Imagem: Tolga Akmen/AFP

Colunista do UOL

25/06/2021 17h15

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"Eu acho que o futebol precisa ser tratado com um pouco mais de respeito", disse o comentarista de rádio sobre vozes femininas narrando o jogo. E ele se apressou em fazer algumas ressalvas para que todas nós possamos ter a certeza de que ele não é um monstro.

O radialista, que se chama Reginaldo Correa e trabalha na rádio Eldorado de Criciúma, emendou oferecendo outra opinião maravilhosa. Ele disse que até acha que mulher é mais competente e mais organizada do que homem, tanto que, segundo ele, tem mulher em todos os setores da vida, mas, Reginaldo volta a opinar, "pra narrar futebol ainda não dá". E aí Reginaldo imita debochadamente o que ele acha que é o timbre de voz de uma mulher.

São tantas as camadas de complexidades desse pequeno trecho de sinceridades que precisarei ir por partes.

Reginaldo sugere no início de seu discurso que a voz feminina narrando um jogo é um desrespeito. Não fica claro quem está sendo desrespeitado, mas a gente imagina que seja o futebol e o próprio Reginaldo.

Reginaldo usa a palavra desrespeito assim de forma solta mesmo porque não passa pela cabeça dele que desrespeito seja, por exemplo, uma mulher ser estuprada a cada oito minutos.

Certamente também não passa pela cabeça dele que desrespeito é uma menina de 13, 14, 15 anos - uma criança, portanto - já não poder sair na rua sem que sobre ela caiam muitos olhares de desejo sexual, uma sensação que é internalizada em todas nós, desde o aparecimento de nossos peitos, ou até antes, de forma com que nos sintamos objetos e não sujeitos.

Reginaldo não tá nem aí para a realidade que diz que existir num mundo como esse, organizado nos mínimos detalhes pela lógica masculina que todos os dias nos diz que somos um pedaço de carne, faz com que tudo o que quisermos ser ou fazer da vida seja muito mais difícil. O caminho para chegarmos em qualquer lugar sempre foi infinitamente mais violento do que o de qualquer homem.

Mas Reginaldo não se importa com nada disso: para o grande Reginaldo desrespeito é mulher narrar jogo de bola.

Narrar uma partida é ter a chance de contar uma história. Nós, mulheres, estamos apenas começando a contar histórias sob o nosso ponto de vista. Até hoje, todas as histórias contadas tinham - e ainda têm em larga medida - o ponto de vista do homem branco e heterossexual.

Se nossa voz soa estranha em alguns lugares é porque não estamos acostumados a escutá-la exatamente nesses lugares. Vozes femininas são silenciadas desde a Idade Média. Quando dizem que mulheres falam muito a comparação não é feita em relação à fala masculina, mas sim em relação a séculos de silenciamento. Por isso a sensação é a de que estamos falando muito. Não, não estamos. Mas estamos lutando por igualdade de vozes e não vamos desistir porque Reginaldo e outros machos que preferem machos narrando estão ressentidos, machucados, enfurecidos.

Para que uma mulher ocupe lugar em profissões que eram até ontem exclusivamente masculinas ela precisa ser muito melhor do que a média de um homem em início de carreira. A uma mulher não é dada a chance de errar nesse espaço. Um erro compromete toda a luta. A mulher que erra, erra por todas porque imediatamente dizem: "Tá vendo? Mulher não sabe narrar". Em compensação, o homem que erra - e, ô, como eles erram - erra sozinho. "Foi um deslize. Ele é bom profissional. Segue o jogo".

O que fica nítido é que Reginaldo quer é voz de macho narrando jogo. E isso me leva a pensar que homem gosta mesmo é de ver outros homens performando. Ligar a TV para ver mulher jogar não é interessante. Agora, um monte de cara forte disputando corpo a corpo uma bola uns com os outros tudo narrado pela voz bem grave de um outro homem, aí sim. Aí o Reginaldo gosta demais, fica amarradão.

Por fim ele imita o que, em sua imaginação, é o timbre de voz de uma mulher: um som rachado, tacanho, abjeto e que faz os colegas de programa rirem. Eles existem uns para os outros: se entretendo, se admirando, se aplaudindo.

Se é assim que Reginaldo escuta nossas vozes então Reginaldo não gosta mesmo muito de nenhuma de nós ainda que, ele diz, possamos ser muitas coisas nessa vida - claro, sem dúvida.

Baseado em pesquisa cuja fonte são "vozes em sua cabeça", ele diz que mulheres são até melhores do que homens em muitas coisas, o que é de fato uma declaração maravilhosa porque, sem nenhuma base científica, é apenas coerente com o momento pelo qual estamos passando. Não somos melhores e não somos piores, meu caro colega. Nós apenas somos. Somos sujeitos plenos, capazes de fazer tudo aquilo que nossos desejos e sonhos quiserem. Essa tentativa demagoga e infantil de nos separar em caixas e, para algumas funções, colocar a gente em pedestais diz mais sobre sua baixa capacidade reflexiva e cognitiva do que sobre nossas qualidades e talentos.

Se Reginaldo não gosta de como a gente soa, de como a gente vibra, de como a gente grita, de como a gente explode (porque narrar um jogo é soltar a voz em muitas dimensões de emoção) não é preciso ser um gênio para entender que, de mulher, Reginaldo e todos os que concordam com ele não gostam muito.

Reginaldo, meu caro: a gente vai narrar, a gente vai vibrar a gente vai cantar. E não tem mais como esse mundo voltar a ser o que era antes.

A boa notícia é que sempre haverá uma voz masculina bem grave para narrar jogos, e você pode optar por assistir a esses e não aos outros.

No mais, apenas preciso dizer que aquilo que Reginaldo provavelmente vai chamar de exercício de livre expressão, eu chamo de masturbação. Os amigos riram e é isso que importa, não é, Naldo?