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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

E se o futebol não existisse?

Pedro ajoelhado ao lado da taça do Brasileirão - Marcello Zambrana/AGIF
Pedro ajoelhado ao lado da taça do Brasileirão Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Colunista do UOL

28/02/2021 14h40

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Acho que todo torcedor já se encontrou na situação de amaldiçoar a própria paixão pelo jogo. Pra mim ela bate quando me vejo diante de alguma injustiça enorme motivada por erro de arbitragem (incluído aí o detestável VAR) ou quando sinto que o time não se entregou, que naquele dia parecia não querer nada com nada.

Nessas horas digo a mim mesma: "Basta disso. Deu. Fico aqui feito uma imbecil berrando, torcendo e distorcendo pra quê? Pro juiz garfar meu time? Pra esse jogador babaca chutar o pênalti na arquibancada? Cansei".

Mas na partida seguinte lá vou eu. Vejo se a camisa do Corinthians já esta seca no varal, ligo a TV como quem não quer nada, vou chegando de mansinho, prometendo a mim mesma que vou assistir mas sem perder suco gástrico. Vou assistir como assistem as pessoas maduras, finas e elegantes e, ao final, a despeito do resultado, seguir com minha vida. É só um jogo.

Só que, evidentemente, o futebol não é "só um jogo". É muito mais do que isso e aos 10 minutos do primeiro tempo, quando meu time bate um escanteio curto lá estou eu gritando e esbravejando pra irritação máxima do vizinho palmeirense.

Se o futebol não existisse eu certamente teria feito coisas muito diferentes da vida nas tardes de domingo ou nas noites de quarta-feira.

Certamente teria chorado menos, me frustrado menos, me chateado menos.

E, claro, não teria abraçado a quantidade de pessoas estranhas que já abracei pelas arquibancadas da vida depois de um gol improvável no final de um jogo importante - ou no final de qualquer jogo, pra falar a verdade.

O futebol não tem a importância que tem por ser um jogo, mas porque é um evento que mostra o que a gente pode ser quando decide se unir e fazer alguma coisa coletivamente - seja jogar ou torcer. Na maioria das vezes nem se trata de levantar um troféu, mas de trocar passes, de atacar, de fazer a gente palpitar.

O torcedor flamenguista está feliz com o título mas parece meio ressabiado com o time. Meus amigos rubro-negros me dizem que o time está jogando mal, está desgovernado, sem brilho.

Mas a favor do Flamengo de Rogério Ceni o que eu posso dizer é que se trata de um time que busca atacar - e isso atualmente já é bastante coisa. Um time que quer a posse de bola e quer pressionar o adversário desde o pontapé inicial.

Qualquer torcedor desatento sabe que essa não tem sido a regra na era da hiper-valorização de esquemas táticos ultra-defensivos.

"Ah, mas do que adianta atacar e tomar gol?", dirão muitos.

Adianta, na minha opinião, porque existe na estratégia um sinal de respeito ao futebol, ao que esse jogo nasceu para ser.

Quando o futebol foi oficialmente criado jogava-se no 1-10: um defensor, dez atacantes. Era um jogo, como conta o professor Hilario Franco Junior em seu livro A Dança dos Deuses, voltado para a ofensiva total.

Naturalmente não estou sugerindo que voltemos a jogar assim. O jogo evoluiu, foi modificado, ganhou intensidade e alguns esquemas defensivos são de fato brilhantes. Mas existem muitas maneiras de se jogar futebol respeitando a vocação ofensiva do jogo.

Eu estava em Wembley no dia 28 de maio de 2011 quando o Barcelona venceu o Manchester United e faturou a Liga dos Campeões. Eu já tinha visto o Barcelona de Guardiola, Messi, Iniesta, Villa, Dani Alves, Xavi, Buschets, Mascherano e Piqué dezenas de vezes pela TV, mas vê-los no campo foi uma experiência completamente diferente.

Havia ali um esquema tático cujo requinte e inovação a TV não podia revelar em sua mais potente amplitude.

Messi, por exemplo, corria desembestadamente com ou sem a bola. Não era um jogador destacado do time; muito pelo contrário. Era apenas mais um operário daquele coletivo.

Assim como ele, os demais corriam e corriam e corriam como se tivessem quatro pulmões cada.

Era uma intensidade sem igual, uma fúria obcecada pela recuperação da posse de bola e, uma vez recuperada a posse, um desejo coletivo de se aproximar um do outro, tocar e fazer nascer espaços e oportunidades de gol que a única expressão para o que eu estava sentindo vendo aquilo era a de arrebatamento.

Dentro de Wembley, por 90 minutos, eu me senti em uma situação de tempo-espaço suspensa.

Saí de lá com a certeza de que, como disse o mitólogo americano Joseph Campbell, não buscamos um sentido para a vida, mas um sentido para a experiência de estarmos vivos.

São coisas diferentes e o futebol, quando cumpre sua vocação, confere sentido a experiência de estarmos vivos. Por isso, e não por outra coisa qualquer, ele é gigante.