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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O VAR veio para atrapalhar

Árbitro checa o VAR durante partida entre Sport e Flamengo pelo Brasileirão 2020 - Rafael Vieira/AGIF
Árbitro checa o VAR durante partida entre Sport e Flamengo pelo Brasileirão 2020 Imagem: Rafael Vieira/AGIF

Colunista do UOL

14/02/2021 20h21

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O Futebol, da forma como eu vejo esse jogo, é uma arte. E, como toda a forma de arte, deveria nos elevar a um lugar de mais significado. Não acho que o VAR colabore para isso, nem para aumentar a beleza do jogo e - aqui é onde começo a apanhar - nem mesmo para que ele seja mais justo. O VAR vai errar e vai acertar. Vai deixar você furioso e vai deixar você em êxtase. Vai acertar por milímetros e errar por interpretação. Vai "beneficiar" seu time na quarta e "prejudicar" seu time no domingo. Porque o VAR não é capaz de dar conta de todas as camadas de subjetividades de um jogo de futebol. E ele veio para atrapalhar.

Mas a turma que defende que o VAR deixa tudo justo não aprecia esse tipo de argumento. Então eu tenho um segundo argumento.

Os norte-americanos nunca gostaram muito desse jogo que o resto do planeta ama e uma das críticas mais comuns é a de que o jogo não tem muitos intervalos (a outra é a de que se trata de um esporte jogado com os pés, o que para eles é uma insanidade já que o natural é jogar jogos de bola com as mãos, muito mais ágeis do que nossos pés).

Uma vez, conversando com um amigo norte-americano que detestava futebol, escutei dele que se o esporte quisesse espaço em TV nos Estados Unidos deveria ter mais oportunidades publicitárias. "Quatro tempos de vinte minutos", foi o que ele sugeriu. Assim, ele disse, haveria mais apelo para os interesses do mercado.

O VAR entra em campo para beneficiar mais esse tipo de interesse do que a sede por justiça. Quando ele é acionado, o jogo para, o grito de gol é sufocado, a torcida fica em estado de perplexidade até que, dois, três, quatro, cinco minutos depois o gol seja confirmado ou cancelado; o pênalti seja validado ou anulado. Temos aí um novo portal para que patrocinadores façam a sua farra.

Esse não é o jogo pelo qual me apaixonei. É um outro, e posso também me apaixonar por ele, mesmo discordando. Mas é outro.

O que talvez seja mais chato do que o VAR é o debate que traça uma fronteira ética entre os que são a favor e os que são contra o VAR, como se todos os que fossem contra caíssem retumbantemente para o lado antiético. Do mesmo jeito que quando, em 2001, o Brasileirão de pontos corridos foi instituído, quem ousava reclamar dele e pedir a volta do mata-mata era considerada uma alma imoral.

O VAR não vai trazer justiça plena ao jogo. Mas vai, sem dúvida, trabalhar para deixá-lo mais chato, mais monótono, menos emocionante. Vai, como disse meu amigo Allan, dar mais espaço para a juizada aparecer - e quanto mais o juiz aparece, pior para o futebol.

O VAR serve ao Capital e à mercadoria, ao mundo das coisas objetivas, aos que querem tirar a paixão dos debates. E se é bom para o mundo das mercadorias, deixa de ser bom para o mundo das sensações, das emoções, das subjetividades que constituem aquilo que somos e as formas de arte que ajudam a gente a suportar o que, muitas vezes, parece insuportável - que é a noção de que um dia deixaremos de existir.

O VAR pode ser a sua; mas definitivamente não é a minha.

A arte é o único remédio realmente eficaz para que a gente escape das perversidades da existência, da devastação que está contida na consciência da finitude. E, faz um tempo, estão tentando fazer o futebol deixar de ser feitiço, deixar de ser encanto e magia. Eu acho uma lástima. Como sugeriu o grande Eduardo Galeano: o futebol moderno condena o que é inútil; e é inútil o que não é rentável. Na minha humilde opinião, é uma pena.