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Não é futebol, é racismo

Júlia Belas Trindade é pesquisadora das relações de raça, gênero e sexualidade no futebol na University of Bristol, na Inglaterra - Reprodução/Twitter
Júlia Belas Trindade é pesquisadora das relações de raça, gênero e sexualidade no futebol na University of Bristol, na Inglaterra Imagem: Reprodução/Twitter
Júlia Belas Trindade

Colaboração para o UOL, em Bristol (ING)

23/05/2023 04h00Atualizada em 23/05/2023 11h18

É indispensável falar de racismo no futebol, não só quando acontece (mais) um caso gritante como o das agressões a Vinicius Jr. na Espanha. É preciso falar sobre racismo todos os dias. Você pode não ver. Pode não ser um grito captado pelos microfones, pode não ser um gesto direcionado a um jogador, pode não ser um boneco pendurado em um viaduto. Mas o racismo está ali, agindo constantemente, e com uma estratégia de defesa muito bem definida.

Quando Vinicius Jr. entra em campo e sofre ataques racistas, o treinador branco não vê, até que um estádio inteiro seja o agressor —difícil de ignorar. Quando Vinicius Jr. é agredido em campo e expulso por denunciar o racismo, a arbitragem, branca, não vê; apenas retira o negro agressivo que ousou se defender —até o responsável, depois do ato, ser demitido. E quando Vinicius Jr., ainda adolescente, sofria com agressões racistas por parte de torcedores rivais no Brasil, o brasileiro branco não via —só agora, que o agressor é "outro" e a condenação é geral.

É muito fácil condenar o racismo alheio nas redes sociais e dizer que o futebol, a sociedade e a mídia espanhola são racistas. É muito fácil dizer para Vini "voltar para casa" como se o Brasil não fosse um país onde jovens negros da mesma idade dele são mortos a tiros pelo Estado. Muito fácil dizer, até, que o Brasil tem que melhorar em um post no Instagram com uma foto em preto e branco. É confortável.

Difícil é um jogador branco deixar o campo quando o seu companheiro de time é agredido. Difícil é o presidente de um dos clubes mais poderosos do mundo se recusar a jogar uma liga até que ela garanta a segurança dos jogadores. Difícil é a mídia reconhecer, fora de momentos específicos, que as vozes que estão lá precisam ser diversas todos os dias —não só em momentos isolados para condenar e dizer que "não são casos isolados".

A violência que grita nos estádios é apenas um dos resultados do racismo no futebol. Aqueles que tomam decisões —treinadores, dirigentes, árbitros, donos de clubes, patrocinadores— também se beneficiam desta estrutura. Condenar quando um atleta do próprio clube é vítima é praxe; no entanto, quando o próprio clube é o agressor, a história muda. E aqueles que estão em posições de poder, beneficiados, agem de forma confortável: um torcedor banido do estádio, um comunicado nas redes sociais, um vídeo, uma campanha pontual com hashtag contra o racismo. Até o próximo caso.

A punição ao agressor é essencial para garantir que os jogadores sejam protegidos, mas é ingênuo acreditar que só ela vai mudar o mundo do futebol a longo prazo. Enquanto a hierarquia do esporte for racista, ele continuará privilegiando alguns. Enquanto a mídia esportiva for quase que exclusivamente branca, ela continuará usando dois pesos e duas medidas para falar de jogadores, técnicos, árbitros e até de outros jornalistas. E enquanto os casos de racismo forem denunciados na Europa, convenientemente se esquecerá que existe racismo —e muito— no Brasil.

O racismo, como estrutura e como estratégia, se defende desta maneira: pode até sacrificar alguns, mas o restante tenta ao máximo se manter firme. Por isso, a luta antirracista no esporte não pode se restringir a pedir por punições mais duras —ela passa pela política, pelo jornalismo, pela educação, pelo dia a dia das pessoas. O racismo, como estrutura e como estratégia, vai continuar se reproduzindo porque ele trabalha o tempo todo para isso —enquanto, para muitos, a luta contra ele acontece só em momentos específicos.

Enquanto o discurso de clubes, companheiros de equipe, jornalistas, treinadores e líderes for apenas um discurso, a estrutura racista do futebol vai permanecer. O Valencia pode ser punido, perder mandos de campo, e dezenas de torcedores podem ser proibidos de acessar um estádio de futebol. Mas, mesmo que os cantos de "macaco" parem, o futebol vai continuar sendo hostil para com jogadores negros —seja em uma crítica inocente à falta de habilidade de um em comparação com a inteligência de outro, seja em impedir que um atleta se posicione ou se defenda.

O racista persegue Vinicius porque ele ousa falar enquanto muitos querem que ele cale. Não é sobre responder dentro de campo, jogando bola. Vinicius tem opiniões, sentimentos, sonhos, dores, responsabilidades. Ele não é atacado pela sua habilidade dentro de campo. Ele é atacado por ser um homem negro —assim como, historicamente, muitos já o foram; e assim como, atualmente, muitos ainda são.

Vinicius e outros jogadores negros não vão ser aceitos, ou nem mesmo engolidos, pelos racistas. Os racistas não merecem espaço no futebol. A sociedade racista, europeia ou não, não merece o futebol. Os racistas, todos eles —sejam torcedores que pagaram ingresso, sejam jornalistas, sejam presidentes de ligas esportivas— precisam sofrer as consequências dos seus crimes.

Enquanto isso não acontecer, no es fútbol, es racismo.

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