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Quadrilhas exploram jovens que sonham com o futebol profissional

Jovem de 16 anos faz embaixadinhas - Márcia Ribeiro/Folhapress
Jovem de 16 anos faz embaixadinhas Imagem: Márcia Ribeiro/Folhapress
José Cruz

21/02/2019 15h49

Duas semanas depois da morte de dez garotos no alojamento do Flamengo, o noticiário na imprensa agoniza, apesar de ninguém ter sido responsabilizado. Prisão preventiva, nem pensar. E a cartolagem da CBF, que assina o Certificado de Clube Formador de Atletas, permanece em irresponsável silêncio. 

O desumano drama estende-se Brasil afora. Reportagem na Folha de S.Paulo, em 15 de fevereiro, informa que mais de mil atletas menores vivem em alojamentos nos principais clubes, vários em situação de improviso e irregularidade. 

Como dizia João Saldanha, "vida que segue"... E é assim mesmo. Segue até a próxima tragédia, algumas silenciosas e despercebidas da imprensa, como as que ocorrem nos consultórios dos psicólogos dos clubes. Cabe a esses profissionais dizer aos jovens que seu tempo para testes se esgotou, que terão de ir embora.

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"Nem todos os clubes têm preocupação com tema tão delicado. Tratam os jovens como descarte, um produto que não serve. O sofrimento psíquico é muito grande, principalmente se não têm alguém por perto para ampará-los", escreveu o professor de educação física com PhD em psicologia Rafael Moreno Castellani, na sua tese de doutorado "O Futebol Profissional e o Processo de Formação de Grupo", aprovada na USP em 2017. 

Na prática, a presença de um psicólogo é indispensável para um clube obter o certificado de "Formador". Mas muitos dos contratos são de fachada. "Esse descuido é também uma tragédia anunciada, e o discurso de formação humana através do esporte é apenas para inglês ver", reforça Castellani. 

O psicólogo baiano Renato Paes de Andrade, por sua vez, viu muito garoto chorar em sua sala, quando trabalhou no Esporte Clube Vitória. Despreparados para dar a notícia, técnicos e dirigentes transferem a missão aos psicólogos. "O sonho acabou". E lá vai o garoto, sem levar para os pais o que mais desejava: um contrato valioso. Afastados por até 16 meses de suas famílias, esses jovens tornam-se jogadores frustrados, motivo de chacotas dos coleguinhas, quem sabe com traumas por longos anos. 

Renato conta outra tragédia. Depois da dispensa, muitas vezes, o garoto aparece em outro clube, com idade alterada, para mais ou para menos. São os famosos "gatos", prática conduzida, principalmente, por espertos agentes "caçadores de craques", os mesmos que se encarregam de levá-los para o exterior, até com passaporte falso, como identificou a CPI da CBF Nike, na Câmara dos Deputados. O aliciamento e o tráfico internacional de atletas menores de idade são escancarados. E daí? 

Sem fiscalização, quadrilhas agem explorando o desejo de milhares de jovens humildes, que tentam no futebol um futuro melhor. Nesse comércio de horrores, o interesse econômico é prioridade. E tudo com o "de acordo" dos pais, já que serão beneficiados, caso o "craque" vingue. Porém, o Estado, a CBF e o Ministério Público estão ao largo dessa tragédia silenciosa.

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