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Febre maculosa: desmatamento tem relação com a proliferação da doença?

Coordenador de pesquisa de controle de carrapato durante inspeção na USP de Ribeirão Preto - Edson Silva - 14.jun.2023/Folhapress
Coordenador de pesquisa de controle de carrapato durante inspeção na USP de Ribeirão Preto Imagem: Edson Silva - 14.jun.2023/Folhapress

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

20/06/2023 05h00

As confirmações recentes de casos de febre maculosa na região de Campinas (SP) reacenderam a discussão sobre a relação entre a degradação ambiental e a propagação da doença. Potencialmente letal, a febre maculosa é causada pela bactéria Rickettsia rickettsii, transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense), no caso do interior do estado.

Esse parasita é comumente encontrado em hospedeiros como cavalos, tamanduás, antas e capivaras. Reconhecida no Brasil desde 1929, a doença também é considerada endêmica da região Sudeste, onde as taxas de mortalidade ultrapassam 50% dos casos registrados, segundo o Ministério da Saúde.

O avanço do desmatamento da Mata Atlântica, hoje somente com 25% da cobertura original, seria um agravante para a proliferação da bactéria? Qual a relação entre as contaminações e o equilíbrio ecológico na região? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões.

Qual a relação entre a ação humana e a transmissão da febre maculosa?

A bactéria Rickettsia rickettsii pode ser transmitida por dois tipos de carrapato, o carrapato-estrela e o carrapato Amblyomma aureolatum, conhecido como carrapato amarelo do cão. No caso de Campinas, é o carrapato-estrela que está associado às contaminações recentes, segundo o professor Matias Pablo Juan Szabó, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Febre maculosa - Jerry Kirkhart/Wikimedia - Jerry Kirkhart/Wikimedia
O carrapato-estrela é um dos transmissores da febre maculosa
Imagem: Jerry Kirkhart/Wikimedia

Especialista em ecologia de carrapatos, ele comenta que esse tipo de parasita é oriundo do cerrado, mas que se expandiu geograficamente após encontrar ambientes similares em áreas verdes antropizadas, ou seja, modificadas pela ação humana.

É uma espécie que vive muito bem em algumas áreas verdes urbanas e rurais. Com a derrubada da Mata Atlântica, e o surgimento de matas secundárias, ele entrou nesses locais onde não tinha antigamente.

Matias Szabó, especialista em ecologia de carrapatos

O professor explica que, nesse novo ambiente, o vetor da doença encontrou também um hospedeiro-chave, as capivaras.

Por que as capivaras são consideradas um hospedeiro importante para essa bactéria?

Szabó diz que esses animais contribuem para amplificar a transmissão da infecção. Após o primeiro encontro com a bactéria, as capivaras podem infectar populações de carrapatos que se alimentarem delas por cerca de dez dias.

"Isso significa aumentar a taxa de infecção dos carrapatos com essa bactéria, mesmo que ela seja patogênica para essa espécie. Se o carrapato-estrela é infectado, essa população diminuiria, não fosse pela amplificação possibilitada pela capivara", analisa o professor.

Febre maculosa - Mateus Medeiros/UOL - Mateus Medeiros/UOL
As capivaras podem infectar populações de carrapatos que se alimentarem delas por cerca de dez dias
Imagem: Mateus Medeiros/UOL

Ele ressalta, contudo, que essa dinâmica ocorre apenas uma vez na vida do roedor. Por isso, para que haja essa amplificação da contaminação de mais carrapatos pela bactéria, também é necessária uma população crescente de capivaras, com animais que nunca tiveram contato com a Rickettsia rickettsii.

"É neste ponto que entra outro viés ecológico. A capivara é um animal que também encontrou nas áreas urbanas um nicho adequado para sobrevivência, com água em represas, lagos e rios, e alimento, como gramados em parques e pastos. O ser humano proporcionou boas condições para a reprodução delas", destaca.

Szabó pontua que hoje áreas com ação humana já têm muito mais capivaras do que áreas naturais. "Mas é importante frisar que nem todas as áreas com capivaras e carrapatos há contaminação por febre maculosa. Mesmo em áreas endêmicas, menos de 0,1% dos carrapatos estão infectados. O problema é que a doença é extremamente letal", salienta.

Então é correto dizer que a doença está associada à degradação ambiental?

O professor da UFU aponta que, além da derrubada da Mata Atlântica, que levou à criação de ambientes com características mais próximas do cerrado, que favorecem a sobrevivência de carrapatos-estrela, houve também uma ampliação da população das capivaras, decorrente da interferência humana.

Acidentalmente, favorecemos isso. Criamos um ambiente favorável para elas e os carrapatos, próximo das pessoas.

Matias Szabó, especialista em ecologia de carrapatos

Para Jonas Moraes Filho, professor do programa de pós-graduação em Saúde Única da Universidade Santo Amaro, é nítida a relação entre a degradação ambiental e a febre maculosa tanto em relação à doença transmitida pelo carrapato-estrela quanto pelo carrapato amarelo do cão, registrada na região metropolitana de São Paulo.

No caso desse outro carrapato, os hospedeiros naturais são os canídeos silvestres, como cachorros do mato, mas com a fragmentação das matas, animais domésticos têm circulado por essas áreas e levado o carrapato para dentro de casa.

Moraes Filho recorda que pesquisas já compararam a presença da doença em áreas preservadas e desmatadas, sendo negativa a febre maculosa nas áreas conservadas. Teoricamente, com o ambiente preservado, a bactéria seguiria seu ciclo biológico natural em meio à biodiversidade da região.

"Essa é uma bactéria de circulação mais silvestre do que urbana. Em São Paulo, nas regiões com riscos de casos, as zonas Sul e Leste, o que vemos é que eram áreas com Mata Atlântica conservada, mas que por conta da pressão imobiliária, foram fragmentadas.

Ter pessoas morando nesses locais impacta todo o meio ambiente e a vida selvagem, inclusive os patógenos que eram de circulação silvestre.

Jonas Moraes Filho, professor da Universidade Santo Amaro

Febre maculosa - Diego Padgurschi - 17.mai.2017/Folhapress - Diego Padgurschi - 17.mai.2017/Folhapress
Área de desmatamento da Mata Atlântica em Porto Seguro, regiao sul da Bahia
Imagem: Diego Padgurschi - 17.mai.2017/Folhapress

Por que é importante o entendimento sobre a relação entre meio ambiente e saúde?

A febre maculosa, analisa Moraes Filho, é um exemplo de doença típica de "saúde única" e do quanto a interferência na biodiversidade está ligada também ao bem-estar humano.

As consequências, alerta ele, não são desconhecidas. "Se você altera o meio ambiente, isso também altera a vida humana e animal. Já observamos isso com a febre amarela em São Paulo e com a maculosa é a mesma coisa."

Quais os caminhos para lidar com o problema?

No caso das capivaras, Szabó destaca que o problema é o descontrole populacional. Com menos capivaras, haveria também uma população menor de carrapatos-estrela junto a esse hospedeiro. "Cada local pode exigir uma forma diferente de ação, como esterilização ou separar as capivaras de áreas próximas dos seres humanos", diz.

Ele explica, ainda, que para evitar a letalidade da febre maculosa é necessário um trabalho de conscientização para ganhar tempo no tratamento da doença. "Se a pessoa tiver sintomas como dor de cabeça e febre entre dois e 14 dias após visitar uma área dessas, é importante avisar o médico sobre o possível contato com o carrapato. Esse é o ponto de partida", recomenda o pesquisador.

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