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Opinião

Biodiversidade: como reconhecer e remunerar comunidades tradicionais?

O saber acumulado de povos tradicionais é importante fonte de informação sobre os princípios ativos de espécies da biodiversidade brasileira, base para o desenvolvimento de pesquisas e produtos.

A maior parte desse saber, porém, permanece invisível: 87% dos registros no SisGen, o cadastro nacional do uso do Patrimônio Genético brasileiro, não permitem saber qual comunidade indígena ou tradicional está por trás do conhecimento associado a um item da biodiversidade.

A invisibilidade dessas comunidades é um obstáculo para que elas tenham seus direitos reconhecidos e recebam a justa repartição dos benefícios decorrentes do uso desse conhecimento.

Para resolver esse problema, o Brasil conta com a Lei da Biodiversidade — que, segundo especialistas, garante os direitos das comunidades — e a proposta de um Banco de Dados do nosso Patrimônio Genético.

Imagine a cena. Estamos no final do Segundo Império, quando chegam ao Brasil enviados do Jardim Botânico de Kew, em Londres. Eles têm missão a cumprir: coletar amostras de seringueira, um dos prodígios naturais da Amazônia de que o mundo da época ouvira falar.

Sem autorização prévia de autoridade brasileira, voltam para casa com dezenas de quilos de sementes, criam mudas em solo inglês e plantam vastos seringais nas colônias do Sudeste Asiático. Deu no que deu: no início do século 20, a Inglaterra se torna o maior produtor de borracha do mundo. Em consequência, a atividade extrativista colapsa na Amazônia, originando crise econômica.

A história é contada com verve por Bráulio Dias, ex-professor de Ecologia da UnB (Universidade de Brasília) — e atual diretor de Biodiversidade do MMA (Ministério do Meio Ambiente) —, em curso disponível no YouTube, "Boas Práticas para Pesquisas que Acessam Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado" - espécie de beabá sobre o que se pode ou não fazer com as nossas riquezas naturais.

Exatamente, "boas práticas", visto que ainda hoje cientistas de todas as origens, incluindo os brasileiros, mal conhecem os meandros da Lei Federal nº 13.123/2015, conhecida como Lei da Biodiversidade.

"O meio ambiente é um bem público, que deve ser protegido de modo compartilhado entre União e entidades interessadas em explorá-lo", enfatiza Bráulio Dias no curso citado. "A natureza brasileira não é a casa da mãe Joana."

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A frase de efeito, ao ser relembrada durante entrevista à Mongabay, faz o diretor do MMA sorrir, mas por pouco tempo. "Desde a época colonial, quando os europeus levaram o nosso cacau para ser cultivado na África e Ásia, vivemos uma assimetria no comércio internacional", constata. E vai além: "Acontece que a assimetria continua, porque os países ricos e suas empresas entendem ser possível pegar o que tem de melhor em recursos naturais no resto do mundo, apropriando-se de todos os benefícios econômicos."

Esse talvez seja um dos problemas de gestão mais complexa do ministério de Marina Silva. Dizem especialistas que a Lei da Biodiversidade brasileira é suficientemente aparelhada para ser colocada em prática, mas faltam ações.

O Brasil é o país de maior biodiversidade mundial, algo em torno a 20% do que existe Terra afora. Nossos números falam por si: mais de 100 mil espécies de fauna, quase 50 mil de flora (entre elas, 140 variedades amazônicas "domesticadas" pelos indígenas) e um ativo econômico capaz de aumentar o PIB nacional em cerca de US$ 53 bilhões por ano daqui a duas décadas, apenas contando com a contribuição da biotecnologia industrial.

Entende-se, assim, a cobiça estrangeira sobre o que viceja em nossas florestas. Outra estimativa, também veiculada pelo site da Vitrine da Biodiversidade Brasileira (VBIO) — plataforma online que auxilia a captação e destinação de recursos para projetos ecológicos — calcula em US$ 5 bilhões o prejuízo anual do Brasil com biopirataria.

A invisibilidade das comunidades tradicionais

O curso sobre boas práticas no acesso e uso de nossa biodiversidade foi obra do Instituto Escolhas (SP), a mesma organização que propôs um Banco de Dados do Patrimônio Genético brasileiro. A proposta apresentada ao Ministério do Meio Ambiente, e ainda pendente de aprovação, consiste em uma ferramenta online que permite monitorar os registros de pesquisa da nossa biodiversidade, facilitando a troca de informação entre pesquisadores, governo e detentores de conhecimento tradicional.

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Para Jaqueline Ferreira, gerente de portfólio do Instituto Escolhas, o Banco de Dados surgiu para suprir uma das deficiências do arcabouço legal, "o da não identificação do patrimônio genético associado a um conhecimento tradicional."

Imagine uma pesquisa que vai atrás de um componente x, presente na planta y, apenas encontrada no bioma z do Brasil. Talvez resulte em cosmético ou alimento, talvez não. Incertezas científicas à parte, trata-se de pesquisa e desenvolvimento que usa a biodiversidade nativa, mais especificamente Patrimônio Genético (PG), daí a exigência de cadastro no SisGen, o Sistema Nacional de Gestão de Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado.

Segundo levantamento do Escolhas, cerca de 87% dos registros no SisGen indicam Patrimônio Genético sem referência ao Conhecimento Tradicional a ele Associado (CTA). Ou seja, é impossível saber qual povo indígena ou comunidade tradicional vem fazendo uso de um determinado item da nossa biodiversidade.

"Como é possível aventar a possibilidade de uso, sem dar sua origem? ", alfineta Jaqueline. "Esse conhecimento caiu do céu?".

Buriti produzido por comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais
Buriti produzido por comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais Imagem: Divulgação/Cooperativa Grande Sertão

"A premissa maior da legislação brasileira é a rastreabilidade", aponta o advogado Luiz Marinello, um dos craques sobre aspectos legais da bioeconomia no Brasil. "O Governo quer saber onde a espécie da nossa biodiversidade está sendo utilizada, de que forma e para onde vai."

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A regra vale tanto para o pesquisador individual quanto aquele a serviço da indústria. Porém, caso o uso de Patrimônio Genético resulte em cosmético, por exemplo, haverá outra obrigação a cumprir. "Um ano após o produto ser comercializado, a indústria terá de calcular a renda líquida da venda para ser repartida", detalha o advogado. Ter a base de cálculo já determinada para a repartição de benefícios sobre acesso e uso de biodiversidade é singularidade da lei brasileira.

Foi em 2014 que o Protocolo de Nagoya, assinado em 2010, se tornou efetivo com a função de implementar as diretrizes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, que, na ECO-92, inovou ao indicar a necessidade de repartir benefícios decorrentes do uso de Patrimônio Genético com os detentores de conhecimento. O Brasil assinou o protocolo em 1994, mas foi só em 2021 que o Congresso ratificou e ele entrou em vigor.

O protocolo também previu duas maneiras de repartir esses benefícios: a monetária e a não monetária. E aqui a nossa legislação apresenta outra particularidade, a criação do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Assim, seguindo o cálculo definido na lei, se a empresa escolher a repartição monetária, deverá depositar 1% da renda líquida no fundo, operação repetida anualmente. No caso da não monetária, investirá 0,75% em projeto sustentável a escolher.

Manejo sustentável de jaborandi em Parnaíba (PI)
Manejo sustentável de jaborandi em Parnaíba (PI) Imagem: Centroflora/divulgação

E a história continua, tão rica em possibilidades quanto a nossa natureza. Imagine, agora, que a pesquisa se sirva de Patrimônio Genético associado a conhecimento tradicional - por exemplo, um óleo de babaçu obtido segundo técnicas de uma comunidade tradicional e incluído na composição de um creme de beleza.

Nesse caso, o pesquisador terá de pedir licença ao detentor do conhecimento para iniciar o trabalho, além de fazer o registro no SisGen. "O primeiro passo será conversar com a liderança local e negociar o contrato de acesso", confirma Luiz Marinello.

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Teria o Banco de Dados proposto pelo Instituto Escolhas alguma utilidade nesta etapa do processo? "Com apenas um clique, ele mostra o caminho ao pesquisador, apontando as comunidades associadas ao conhecimento", diz Jaqueline. Sim, pois há casos em que um mesmo Conhecimento Tradicional Associado é de domínio de diferentes comunidades, aumentando a complexidade da transação.

Empresas adotam negociação direta

A Lei da Biodiversidade também permite que a negociação aconteça de modo direto entre as partes - exatamente a escolha que norteia a exploração das nossas riquezas naturais pela gigante na área de cosméticos, a Natura, presente em 48 comunidades, 41 delas na Amazônia.
"Não queremos negociar com intermediários, mas sim com comunidades. A negociação pode durar até dois anos", revela Mauro Costa, gerente de suprimentos da Natura.

No Médio Juruá, na Amazônia, a Natura tem negociado o uso de Patrimônio Genético associado ao conhecimento tradicional com cooperativas locais, "de modo a que a repartição de benefícios seja direcionada às comunidades, valorizando seus modos de vida", realça Priscilla Matta, gerente de sustentabilidade da empresa.

Já a compra de matéria-prima acontece de outra maneira. "Seguimos os princípios do biocomércio ético, não há exigência de repartição de benefícios", diz Mauro. Ou seja, a legislação não regula a compra de matéria-prima; o comércio é acertado entre as partes envolvidas: empresa e produtor. Não é preciso registro no SisGen.

São cenários com diferentes contratos - e nem todos ficam satisfeitos. "É situação de fragilidade, pois não interessa à comunidade entrar em atrito com quem compra a produção que é fonte de sobrevivência", avalia Jaqueline.

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Médio Juruá, Amazonas
Médio Juruá, Amazonas Imagem: Diego Viegas e José Edilson Neto

Outro problema: a falta de preparo da liderança comunitária para lidar com o grande empresário e encontrar acordo razoável, mesmo no tocante à venda da colheita. "Boa parte das comunidades tradicionais não conta com apoio jurídico para defender seus interesses", reconhece Bráulio Dias, apontando um dos gargalos de difícil administração pelo MMA.

"[O Protocolo de] Nagoya incentiva a criação de protocolos comunitários, pois é preciso que as comunidades, indígenas ou não, discutam essas questões e estabeleçam regras", diz Bráulio, acrescentando que a Lei da Biodiversidade brasileira - que, a seu ver, não precisa de ajustes - segue o que é determinado internacionalmente. Mas, ante o pedido de um bom exemplo já adotado, apenas sorri.

É mesmo complicado não apenas entender como também satisfazer interesses tão díspares quanto os da negociação que reúne ciência e indústria, governo e comunidade local. Em meio ao impasse, há quem assuma comportamento à parte, caso da Centroflora.

Trata-se de outro colosso, agora do ramo industrial (farmoquímica), produzindo IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) com Patrimônio Genético brasileiro. E é assim que ela vem se sobressaindo há décadas com projetos como o do jaborandi: é de sua folha seca que a empresa extrai o princípio ativo da pilocarpina, usado no tratamento de glaucoma e presbiopia.

Com fazendas no Norte e Nordeste, a Centroflora adquire matéria-prima e negocia com as cooperativas de coletores. E, por ser intermediária (vende o IFA a indústrias farmacêuticas, por exemplo), apenas faz o registro no SisGen, eximindo-se de repartir os benefícios da comercialização de produtos. Na prática, porém, algo a mais acontece.

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"Os fundadores são dinamarqueses, então a vocação de repartir benefícios está no DNA da empresa", orgulha-se Cristina Ropke, diretora de inovação da Centroflora. Isso acontece por meio de programas como o "Parcerias para um Mundo Melhor", em curso desde 2003 - portanto, anterior à Lei da Biodiversidade -, que procura transformar o dia a dia dos coletores (30 mil famílias) incentivando a agricultura familiar ou transmitindo técnicas de manejo sustentável.

Cristina, que é farmacêutica bioquímica, tem a mesma opinião de Bráulio Dias sobre a Lei da Biodiversidade. "Está sendo aperfeiçoada passo a passo. O SisGen ainda tem de melhorar, mas há hoje segurança jurídica e isso é bom."

Modelos comunitários

Luís Carraza, secretário-executivo da Cooperativa Central do Cerrado, pensa diferente. "É lei confusa, que coloca exigências e não indica o caminho a seguir". Ele explica: "Enquanto protege o direito comunitário de ter rendimento oriundo da repartição de benefícios, afugenta a empresa que não conta com departamento jurídico estruturado. Ela se sente insegura e desiste da negociação."

Criada em 2004, a Cooperativa Central do Cerrado, com 23 filiadas, prova que o Brasil profundo clama por ser ouvido (e respeitado) sobre as riquezas de seus territórios. "Ela surgiu da exigência de se unir para fazer um comércio coletivo, explorando uma única estrutura para vender baru, buriti e pequi, por exemplo, seguindo o procedimento ético da conservação da biodiversidade", resume Luís Carraza.

Uma de suas associadas é a Cooperativa Grande Sertão, em Montes Claros, no semiárido de Minas Gerais. Entre os produtos que negocia, destaca-se o óleo de buriti, que a Natura fraciona e refina para depois aproveitar na produção de cosméticos.

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"O trabalho da nossa comunidade parte do conhecimento tradicional acumulado há gerações", salienta José Fábio Soares, responsável técnico da cooperativa. "É da retirada da polpa da fruta, colocada ao sol para secar, que se faz o óleo - a 'raspa do buriti', como se diz por aqui."

Da cliente preferencial, aliás, só há elogios. "Tivemos dificuldade de entender a repartição de benefícios, mas a Natura explicou a legislação, foi valioso para nós", lembra. "Nós" diz hoje respeito a 2 mil famílias, espalhadas em 35 municípios, unidas em torno de um ideal: a conservação do Cerrado e da Caatinga em luta contra o desmatamento.

"Usar grandes extensões de terra para a produção de carvão coloca em risco a sobrevivência das espécies nativas e das famílias ligadas à atividade tradicional", alerta José Fábio.

Área de cultivo e extração de produtos da Cooperativa Grande Sertão, no norte de Minas Gerais
Área de cultivo e extração de produtos da Cooperativa Grande Sertão, no norte de Minas Gerais Imagem: Divulgação/Cooperativa Grande Sertão

É um modo de agir e pensar que dá lastro ao que dizem os indicadores legais, que, recorda Marinello, "comprovam que, onde existem comunidades tradicionais e povos indígenas, as florestas se encontram mais bem preservadas. Existe uma relação umbilical entre esses povos e a floresta."

O advogado, ferrenho defensor da atual legislação, concorda sobre a urgência das ações. "Falta, por exemplo, treinamento, tornando a lei mais efetiva para que povos e comunidades tradicionais conheçam os direitos que têm nas mãos."

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Mas a Lei da Biodiversidade tem, no seu entender, um quê de vanguarda ao incluir o acesso in silico, feito a partir de fontes ou sequências digitais. Porque as indústrias mais avançadas em tecnologia, de uns tempos para cá, não precisam mais de amostras físicas para acessar a biodiversidade, usando apenas uma informação para que a amostra seja criada em laboratório.

Nada há de mais atual - e controverso - do que o acesso e uso de sequências digitais (ou DSI, sigla em inglês para Digital Sequence Information) de riquezas naturais. Daí a questão que esquentou o clima na COP 15, em Montreal, em 2022: afinal, DSI deve ou não ser regulada de modo específico?

No final, prevaleceu o entendimento de que o Protocolo de Nagoya também diz respeito às sequências digitais. Ou seja: respeitando a repartição de benefícios, a proposta é criar um sistema aberto de acesso à informação sobre biodiversidade que já circula online. Será livre, mas já incluindo controle interno de cada país sobre quem está utilizando o Patrimônio Genético relativo às suas riquezas naturais.

"Feita a apuração, graças aos bancos de dados ao redor do mundo, a ideia é depositar um valor a ser determinado em um fundo para depois repartir entre os países envolvidos", conta Luiz Marinello. A discussão continua em andamento, mas tudo indica que o Protocolo de Nagoya tem os dias contados. "Ele será substituído por um sistema multilateral de repartição de benefícios. É o futuro do acesso e uso da biodiversidade se anunciando e de modo inteligente."

*Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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