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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que eu temia aconteceu: perceberam que eu sou um peixe fora do aquário

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Imagem: iStock

16/05/2022 06h00

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Meu maior medo de me identificar como homem, o que sempre fui, era perder minha filha.

O medo era dela tão pequena não entender como podia um homem ser mãe.

No entanto, diferente do que a maioria dos adultos pode pensar ou dizer, ela foi a pessoa que mais me acolheu.

Porém, os anos passaram e eu fiquei esperando o momento que, pelo preconceito estrutural, ela começaria a ter vergonha de mim. Afinal, agora ela já está com quase 9 anos. Afinal, agora "o meio" já tem influência suficiente para que ela seja atingida por alguma tentativa de ofensa da qual eu não tenho como proteger.

Até que alguns dias antes do Dia das Mães - uma data que sempre me deixa apreensivo pelos trabalhinhos escolares e a reprodução da maternidade "padrão" - em um dia que o pai dela a buscava na escola, nós nos cruzamos.

A escola dela fica localizada bem próxima de onde trabalho, e eu escutei a sua voz e a reconheci. Faz anos que essa é a voz mais importante da minha vida.

Ela não tinha me visto.

Confesso que fiquei congelado de medo de ir em direção a ela, que estava rodeada pelas amigas e as mães e pais de seus coleguinhas.
Fiquei com medo que ela fosse sentir vergonha.

Que "aquele momento" tivesse chegado enfim. Afinal, estava montado o "cenário ideal" para isso.

Enquanto eu estava ali parado decidindo se ia ou não falar com ela, no que parecia o tempo de uma vida toda, ela me viu.

Eu gelei! Agora passar despercebido não era mais uma opção. Este era o momento que de alguma forma eu adentraria o imaginário do meu maior medo, e este podia ser um espaço de exclusão.

O que veio a seguir mudou tudo.

O sorriso que ela deu pra mim naquele momento foi tão significativo quanto a primeira vez que ela, ainda bebê, me olhou nos olhos e sorriu. Era exatamente a mesma felicidade em me ver.

Na verdade, percebo agora que também era minha essa felicidade.

E ela deixou para trás o pai, as amigas e colegas, e veio correndo em minha direção pulando no meu colo num abraço tão apertado e carregado de carinho que me fez acreditar em mim de novo.

A cantora Liniker possui uma música chamada "Sem nome, mas com endereço", que diz assim:

"Tô indo pro imaginário do teu peito
No compasso do que faço
Aperto o passo, encontro o teu jardim
No paraíso das manhãs
Pétalas brancas caem em mim
Eu vejo você vindo

Me pega pela mão
Te dou meu coração
Deixo você entrar
Me pega pela mão
Te dou meu coração
Deixo você entrar

Você tem flores na cabeça
E pétalas no coração
Tem raízes nos olhos, excitação
Acalanta o meu coração".

Se esta música não estava tocando naquele momento no universo para o mundo todo ouvir, com toda certeza ela estava tocando dentro de mim.

E assim minha filha fez. Ela desceu do meu colo, olhou em volta, me pegou pela mão tão forte quanto conseguiu e me levou em direção àquele ataque de atenção calorosa que recebi dos coleguinhas dela.

Ela me guiou até o mundo dela, com orgulho de eu estar ali, quase como se quisesse "me exibir".

No Dia das Mães, que chegou logo depois disso, ela escreveu em um cartão para mim o seguinte: "Mamãe, você é um homem muito legal, estudioso, trabalhador. Você é carinhoso e faz tudo por mim. Te amo."

Ela sabe que se apertar o passo vai encontrar o meu jardim, sempre.

Independente de gênero, existe orgulho neste paraíso.

Na verdade foi o meu imaginário que se enganou, e nunca imaginou que as raízes que entrelaçamos com muito amor seriam suficientes para desligar tudo que há de ruim no mundo.

Não importa o quão "peixe fora do aquário" eu possa ser, nem a inexistência de um nome para eu carregar em mim desde sempre.

Quando existe amor, sempre existe um endereço para acalentar o coração.

P.S.: Dedico essa coluna à Fernanda Schimidt, mais do que a "minha" editora em Ecoa, mas alguém que construiu tanto comigo. A pessoa que muda agora de endereço, porém que sempre vai ter seu lugar guardado em mim.