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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Qual o peso de uma medalha?

Simone Biles, durante apresentação no Mundial de ginástica artística - Ricardo Bufolin/ Panamerica Press/ CBG
Simone Biles, durante apresentação no Mundial de ginástica artística Imagem: Ricardo Bufolin/ Panamerica Press/ CBG

09/08/2021 06h00

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Hoje eu vou contar duas histórias.

A primeira delas, é sobre a situação da empregabilidade na pandemia, que continua deixando muita gente sem dormir, com a incerteza do amanhã.

Era uma vez uma promissora oportunidade de pertencer a um ambiente organizacional que realiza um processo de admissão para cargos em tecnologia, focado em perfis sub-representados no mercado de trabalho. Esse processo chama a atenção, afinal, estamos falando de proporcionar equidade no mercado para pessoas que não tiveram a oportunidade de trabalhar na área que mais cresce no mundo. E como se não bastasse, a empresa ainda promove a curva de aprendizado para as pessoas admitidas, sem cobrar delas nenhum conhecimento específico prévio, nenhuma formação na área, nenhum pré-requisito. É óbvio que muita gente quer essa oportunidade para si. Muita gente mesmo.

Em paralelo, quero contar a segunda história, que acontece do outro lado do mundo. Não na tecnologia, mas no esporte.

Era uma vez, de 4 em 4 anos, esportistas de várias modalidades vindos de diversos países, se reunindo para o maior evento multiesportivo internacional: os Jogos Olímpicos. Esportistas estes inclusive pertencentes a modalidades que não contam com apoio para seu desenvolvimento, sejam financeiros, da família, ou de visibilidade. Mas, de qualquer forma, lá estão eles, de certa forma, também participando de um "processo seletivo" em busca de uma vaga - a medalha.

É aqui que as duas histórias que acontecem em âmbitos tão distantes, convergem, e podemos traçar paralelos sobre fatos acontecidos nelas.

Voltando à primeira história, após a acirrada "competição" por uma das oportunidades de empregabilidade no processo seletivo, um fato chama atenção: enquanto muitas pessoas desejavam aquela medalha, houve quem declinasse de subir ao pódio. Ao mesmo tempo, houve quem recebeu aquela medalha como a primeira oportunidade que teve na vida para poder protagonizar sua existência tendo uma carreira.

O que mudava entre essas duas personas era o nível de acesso a desenvolvimento que tiveram antes. Assim como no esporte, apoios financeiros, familiares e de visibilidade. A persona que declina uma oportunidade dessas desdenhando da medalha recebida, é uma pessoa que teve privilégios suficientes para dizer que "não precisa disso". Enquanto a persona que abraça a oportunidade com uma gratidão e comprometimento sem tamanho, nunca teve os acessos à apoios que deturpassem o objetivo desse processo seletivo, e a potência de mudança de realidades - como a sua própria. O pódio para essa pessoa era o que ela precisava para poder ter uma chance na vida.

Mas o nível de acesso a desenvolvimento, motivo que citei aqui de diferenciação entre essas duas personas, não é o fator chave. O nível diferente de acessos, que fez com que atitudes tão diferentes fossem tomadas frete à uma mesma oportunidade, é apenas um reflexo de que mesmo dentro de grupos sub-representados, existem aqueles que estão em um grau de privilégio muito menor. Não foi coincidência que quem subiu ao pódio com a medalha no peito e o orgulho de ter uma chance na vida, é uma pessoa trans. A persona que declina de subir neste pódio, e desdenha da oportunidade, é uma pessoa cis.

Voltando à segunda história, onde atletas estão lá competindo pelas vagas, podemos perceber que, assim como num processo seletivo organizacional, não sabemos de onde elas partiram. Mesmo que na competição que estamos assistindo ao vivo, todas elas comecem a correr do mesmo ponto, se joguem na piscina no mesmo apito, ou o placar inicie zerado, nós não temos ciência do nível de acessos e barreiras que essa pessoa precisou passar para chegar até ali. Só que diferentemente da primeira história, onde vimos personas com mais privilégios declinando de oportunidades "porque não precisam", nessa história vimos atletas precisando declinar de subir ao pódio, ou sendo impedidas disso, pela carga de tudo que carregaram nas costas até chegar à Tóquio. E não estou falando de competição de levantamento de peso, mas sim de carga mental, cobranças, e preconceitos estruturais que, além de não preservarem essas atletas para poderem apresentar o seu melhor desempenho, ainda às levaram à um esgotamento de saúde mental que as desclassificou antes mesmo que elas tivessem alguma chance.

E sabe outra coisa que não é coincidência? Que essas pessoas eram mulheres negras. Ou seja, de novo estamos falando de pessoas de grupos que são sistematicamente esmagadas pelos preconceitos estruturais. E neste caso, uma dessas pessoas, Simone Biles, disse o seguinte: "Temos que proteger nossas mentes e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos.".

Histórias que são aparentemente tão distantes, nos mostram que mesmo dentro de grupos sub-representados, não podemos relativizar marcadores sociais que carregam estruturalmente preconceitos históricos. Uma mesma oportunidade tem efeito diferente para quem tem o privilégio de querer ou não subir no pódio. Tem muita gente que não tem essa escolha.

Já que não partimos do mesmo ponto de partida, o peso da medalha também não é o mesmo. Os grupos colocados à margem da sociedade continuam partindo lá de trás e carregando pesos maiores, inclusive quando a competição é da mesma categoria. O ato de subir ao pódio é possibilidade para poucos, mesmo quando eles chegam em primeiro lugar.