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Trudruá Dorrico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Literatura indígena de assombração

Capa do livro "A caveira rolante, a mulher lesma e outras histórias indígenas de assustar" - Reprodução
Capa do livro "A caveira rolante, a mulher lesma e outras histórias indígenas de assustar" Imagem: Reprodução

Julie Dorrico

27/10/2021 06h00

Engana-se quem acha que o medo não é universal. O tema está presente na literatura impressa de autoria indígena dos povos Maraguá e Munduruku. Sua presença não anula a disputa política por identidade, narrativa e espaço na literatura brasileira, pelo contrário, mostra que as obras indígenas esteticamente unem fruição, identidade e pedagogia sem tornar isso um tabu. Conheça a seguir três obras para acelerar o coração, de medo.

O povo das histórias de assombração

De autoria de Yaguarê Yamã e Uziel Guaynê, a obra "O povo das histórias de assombração" (Editora Cintra, 2020) apresenta os seres e visagens da religião Maraguá. Para entender quem são e como atuam esses seres de assombração, os autores explicam a hierarquia e como se classificam dentro da sua religião, chamada Urutopiãg. As entidades, conforme explicam, dividem-se em classes segundo a ordem dos seres e poderes. Assim, na ordem divina existem os deuses Anhãga e Moñag; o semi-deus, Wasiry; os espíritos protetores Tapirayawara, Çukuywéra, Ka'apora'rãga, Pirá'ákãg, Yanawy e Kaçawaçú'rãga, que fazem parte das histórias de origem e são tidos como sagrados.

Capa do livro "O povo das histórias de assombração" - Reprodução - Reprodução
Capa do livro "O povo das histórias de assombração"
Imagem: Reprodução

Além deles, existem as entidades que dão medo, tais como Waurãga - as mães-da-mata; Wãkãkã (ou Myra'ãga) - as visajes, assombrações e fantasmas. Os chamados "seres" que são entidades cujos corpos mais se aproximam do ser humano, tais como Kawéra, Guayára, o Mapinguary, os Jumas e os Kurupyras. Também há os "encantados", seres que não foram criados por nenhum deus ou semi-deus, já existiam antes de haver o mundo: a Pirayba, a Jiboia, a Boiaçu e os Wiára - ou botos-gente. E, por fim, Waurá-kãkãnema, os animais propensos a manifestação de visajes denominadas Waurá-anhãga, as visajes que precisam de corpos para se manifestar.

Trinta e dois personagens (entidades) são apresentadas na obra contextualizadas na floresta, a partir da religião Maraguá. Com isso, os leitores podem conhecer e desfrutar as histórias de terror que acontecem na floresta. Importante destacar que as entidades não são compreendidas pelos autores como "sobrenaturais", mas como "naturais", pois compartilham o espaço físico e espiritual, bem como o tempo ancestral e presente com o povo Maraguá, isto é, fazem parte da memória ancestral e fazem parte do cotidiano do povo. Ler a obra é desvelar entidades assustadoras que arrepiam os cabelos, ao mesmo tempo, significa conhecer a religião Urutopiãg na literatura indígena. Para adquirir a obra, clique aqui: O Povo das Histórias de Assombração (amazon.com.br).

A caveira rolante, a mulher lesma e outras histórias indígenas de assustar

De autoria de Daniel Munduruku, a obra "A caveira rolante, a mulher lesma e outras histórias indígenas de assustar" (Global Editora, 2010) apresenta narrativas ancestrais do povo Tukano, Ajuru, Macurap, Tembé e Karajá (autodenominação Iny). Na introdução, o escritor ressalta que as histórias retratadas na obra são forte indício de que os povos indígenas vivem uma experiência de humanidade própria.

Sobre as narrativas de susto e medo, o autor diz: "Elas mostram que nosso povo desenvolveu uma série de narrativas para mostrar os perigos que nos rodeiam em nossa vida de florestas, de montanha ou cerrado e também para lembrar às crianças a importância de estarem atentas aos desafios que a natureza nos impõe". Nesse sentido, não são narrativas apenas para amedrontar as crianças e os jovens, mas formas de ensinamento que vão lembrando que não estamos sozinhos no mundo e não podemos querer nos transformar em donos das coisas que não criamos, completa Daniel Munduruku. A seguir lia um trechinho de "A caveira-rolante - uma história do povo Tembé":

Contam os velhos Tembé que uma tropa de caçadores foi acampar na floresta. Foi atrás da caça para o alimento da comunidade. E nesse dia tinham tido muita sorte e os moquéns estavam todos sobrecarregados de carne: macacos-pregos estavam de braços abertos, metidos em espetos ao lado dos rabos de guaribas enrolados e membros cortados de outros animais. Ao redor daqueles animais sobre o jirau havia cabeças cortadas, peles, ossos e tripas. Os caçadores tinham saído todos, deixando no acampamento apenas um menino para tomar conta das carnes para não deixá-las queimar. E enquanto o menino estava ali apareceu um homem. Ele deu uma volta no acampamento, examinou tudo nos mínimos detalhes, viu as caças mortas, contou as redes e foi-se embora.

Para saber o final do conto de arrepiar os cabelinhos da nuca, e ainda sobre os caçadores e o Duende Arranca-Olho, o doente de olhos postiços, Kanoé - a história do morcego, a mulher-lesma, as amantes feiticeiras, não deixe de adquirir a obra aqui: A caveira-rolante, a mulher-lesma e outras histórias indígenas de assustar - Daniel Munduruku - Livraria Maracá (livrariamaraca.com.br).

Com a noite veio o sono

De autoria de Lia Minápoty, a obra "Com a noite veio o sono" (Editora LeYa, 2011) fala de como a noite passou a existir no mundo Maraguá, da aventura dos heróis Azuaguáp, Diazoáp e Popóga em busca dela e o enfrentamento à entidade (chamada de demônio no enredo) Bikoroti.

Bikoroti é a entidade que no tempo passado vivia no lago sagrado, o Waruã, guardando os dois potes que continham a noite, cercado de outros demônios que ficavam vigiando os potes como auxiliares da entidade-mor. Com a noite engolindo tudo, o Bikoroti que antes vivia apenas em Waruã passou a viver na floresta. Veja a seguir a descrição dele:

Também até hoje o Bikoroti anda dentro dela. Como não havia mais o que guardar, ele se pôs a andar pela floresta onde começou a praticar maldades contra crianças e tornou-se uma das entidades mais temidas da mitologia Maraguá. De cor azulada e do tamanho de um homem, o Bikoroti tem um rabo curto e mãos de tesoura. Daí o porquê de seu nome. Quando ronda uma aldeia, ele não sossega enquanto não leva uma criança para perder-se na mata ou enfeitiçá-la.

Para conhecer os pormenores da aventura, as origens de alguns animais da noite, seria bom ler a obra, porém ela está esgotada, e o único exemplar disponível na internet está a R$ 543,00, um verdadeiro terror financeiro. Aguardamos uma reimpressão da editora responsável ou futuras reedições.

Quantas obras indígenas de terror/de assombração/de assustar você conhece?

No Brasil, a tradicional data do Halloween, o dia 31 de outubro foi cotado pelo deputado Aldo Rebelo (PcdoB - SP), em 2003, para ser instituído como o Dia do Saci (e de seus amigos Iara, Curupira, Boitatá). Já falamos aqui nesta coluna sobre a diferença de ver tais seres a partir da lente do estado-nação brasileiro e da identidade indígena, para relembrar clique aqui: Folclore brasileiro versus Literatura Indígena: entenda a diferença - 25/08/2021 - UOL ECOA. O fato é que o dia 31 de outubro é abraçado pelos brasileiros que o veem como momento lúdico, ainda que não saibam diretamente ser sobre a celebração dos mortos, dos seres, visajentos, entidades, entre outros.

Apresento as obras de autoria indígena de assombração para que conheçam mais a ancestralidade e a espiritualidade nas personagens indígenas de assustar que figuram no imaginário das gentes da floresta da literatura indígena; e também para aproximar a sociedade envolvente das narrativas que nos compõem enquanto indígenas que compartilham o mesmo território nacional. Boas leituras!

Nota: Uma leitora encontrou a obra "Com a noite veio o sono", de Lia Minápoty, para aquisição com valor acessível na livraria da Associação de Leitura do Brasil.