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Trudruá Dorrico

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Universos Kariri: a poesia e o celular no cotidiano indígena

A cacique Andrea Kariri - Universos Kariri
A cacique Andrea Kariri Imagem: Universos Kariri

Julie Dorrico

05/05/2021 06h00

O e-book "Universos Kariri" é uma coletânea de poemas e ilustrações de autoria das crianças Tapuya Kariri, estudantes da escola indígena Francisco Gonçalves de Souza, da Aldeia Gameleira, localizada na cidade de São Benedito, no estado do Ceará. O livro, de livre acesso, também é a recompensa da vaquinha online Escola indigena Fco Gonçalves de sousa, que busca cooptar aparelhos celulares para distribuir entre os estudantes Kariri, assaltados pelo formato do ensino remoto trazido pela pandemia da covid-19.

Os poemas cantam a ancestralidade Kariri na rememoração do toré, ritual sagrado; na luta em defesa da cultura e grafismo; na denúncia contra os posseiros; na reivindicação pela demarcação da terra; na defesa de uma arte-educação diferenciada e indígena. Com vistas a fortalecer práticas pedagógicas mais democráticas e humanizantes aos sujeitos indígenas, o e-book traz orientações didáticas e propostas de exercícios nas últimas páginas.

"Indígena não deixa de ser indígena por usar roupas e aparelhos eletrônicos"

A sentença presente no livro "Universos Kariri" alerta para a necessidade da pesquisa na luta contra o racismo indígena, que busca minar a credibilidade da identidade indígena na contemporaneidade. É importante compreender que usar celular e outras tecnologias não faz com que o indígena perca sua identidade. No mês de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atacou a identidade indígena ao formular a frase pejorativa "Recebemos a visita da tribo de Iphone". O jornalista Rubens Valente teceu considerações sobre esse comentário. Daqui depreendemos dois princípios vigentes na fala do ministro, e por extensão, do governo: o desconhecimento, ou ignorância, sobre o termo a ser adotado politicamente na referência dos grupos étnicos-indígenas no país; o termo correto é "povo", uma vez que substituiu "tribo" desde 1989, na Convenção 169 da OIT, significando autodeterminação, isto é, direito à organização social própria com apoio do Estado. Sobre como se dirigir de forma respeitosa e por que fazêlo, você pode acessar aqui.

O segundo diz respeito à negação de uso de tecnologias aos sujeitos indígenas como prerrogativa da integração, também superada na Constituição Federal de 1988, que explico a seguir.

O mito da integração no alicerce jurídico ao longo dos séculos

Escola - Universos Kariri - Universos Kariri
Escola kariri Francisco Gonçalves de Souza, da Aldeia Gameleira, localizada na cidade de São Benedito
Imagem: Universos Kariri

A ideia racista de que os indígenas precisariam ser civilizados para superar a identidade étnica criou uma dicotomia incapaz de conciliação, para a sociedade dominante, posto que foi alimentada por uma longa tradição jurídica indigenista no país. Segundo o Diretório Pombalino, de 1757, os indígenas deveriam ser cristianizados e civilizados para superar a barbárie; o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), de 1910, tinha por função prestar assistência leiga em substituição à catequese para transformar os indígenas em trabalhadores nacionais, quando fossem considerados minimamente civilizados, mas sempre em tutela do Estado. O Código Civil, de 1916, regulou o regime tutelar tornando o indígena como sujeito "relativamente incapaz", sentenciando-o à superação do regime pela negação da identidade étnica e adoção exclusiva da nacionalidade brasileira.

Quando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), instituída em 1967, substituiu o SPI, extinto por escandalosos crimes contra a humanidade indígena e corrupção, o princípio da civilização vigorava como integração. O Estatuto do Índio, de 1973, conceitua a identidade indígena, mas a hierarquiza conforme as crenças do Estado brasileiro. A escala conceitual de isolados, em vias de integração e integrados condena arbitrariamente a identidade indígena à extinção. Nessa concepção, o "verdadeiro" indígena é aquele que está isolado; em vias de integração aqueles grupos em contato intermitente que já partilham dos costumes dos considerados civilizados; e os integrados, seriam aqueles incorporados à comunhão nacional no pleno exercício dos direitos civis. Essa plenitude de exercício vinha com a exigência da assinatura em um documento legal emitido pela FUNAI, cujo conteúdo deixava claro a negação dos direitos originários agora que o indígena seria considerado cidadão brasileiro.

O Estatuto elenca a plenitude da capacidade civil e a liberação do regime tutelar nos seguintes tópicos: I - idade mínima de 21 anos; II - conhecimento da língua portuguesa; III - habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional; e IV - razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. A fala do ministro, também presente no cotidiano da sociedade brasileira, pode ser explicada pelos tópicos acima apresentados, pois nelas estão implicadas as convicções de que ao menor contato com os usos e costumes considerados civilizados, os indígenas estariam abandonando suas identidades étnicas. Esta prática reforça o racismo estrutural sobre os povos originários, pois nega o presente, o reconhecimento do indígena como contemporâneo que usa as tecnologias de seu tempo.

Se no passado, o julgamento da identidade indígena incidiu sobre o uso da língua portuguesa e as roupas "do homem branco", desde a década de 1990, quando o celular passou a ser incorporado como costume no país, popularizado com preço mais acessível na década de 2010 em diante, o racismo indígena se reelaborou. O tribunal social brasileiro passou a negar o uso de celulares, computadores e internet aos indígenas, e, também de outros aparelhos eletrônicos, seja ar-condicionado ou máquina de lavar. O uso de tais instrumentos ainda é considerado o grau último do mito da integração, como se a hierarquia imposta pelo Estado para extinção da identidade indígena ainda estivesse em vigor.

Universos Kariri e cacique Andrea Kariri

O livro "Universos Kariri" foi organizado pela cacique e diretora Andrea Kariri e pela professora Letícia Kariri. A autoria é das crianças Kariri da escola Francisco Gonçalves de Souza, cujo nome é em homenagem ao defensor do povo e cultura Kariri, cacique Chico pai Zé. Após a campanha, o livro ficará disponível no site UNIVERSOS KARIRI com livre acesso, como é hoje, mas com sugestão de apoio para geração de renda para realização de atividades artísticas como "manufatura ou compra de materiais artísticos sustentáveis (argila, frutas, pigmentos naturais em geral); apoio para o plantio de árvores, plantas e ervas de onde se extraem tintas naturais (urucum, jenipapo, etc.); promover o acesso e capacitar a comunidade para o uso das tecnologias para que possam gravar CD de músicas indígenas, produzir filmes e documentários, editar livros, desenhos, fotos, registrar histórias, contos, músicas, etc.)".

Para conhecer mais esta iniciativa basta acessar os links:
Facebook: www.facebook.com/livrouniversoskariri
Blog: www.universoskariri.blogspot.com
Instagram: Universos kariri (@universoskariri)
e-mail: universoskariri@gmail.com.

Para fazer uma doação, os dados bancários da pessoa jurídica são:
Associação Indígena Tapuya Kariri
Banco Bradesco,
Agência: 744 - 7,
Conta: 33210-0,
CNPJ: 10.188.666/0001-79.