Topo

Júlia Rocha

A solidão e o esgotamento de mulheres que cuidam de idosos

iStock
Imagem: iStock

27/09/2020 11h50

Ao redor do mundo, cuidar é tarefa feminina. Em alguns países mais, em outros menos. São majoritariamente mulheres aquelas que param a vida para viver a de um outro. Não porque, de algum modo, a natureza tenha nos sinalizado que assim deveria ser, mas porque a cultura que sustenta a sociedade patriarcal precisava de alguém dentro de casa, reproduzindo as condições para que a vida do homem fosse possível lá fora.

Em especial, mulheres que cuidam de pessoas idosas estão isoladas por muitas camadas de solidão, desamparo, sobrecarga, perdas profissionais e financeiras. A maioria das mulheres que exercem esse cuidado são mulheres pobres, que nunca tiveram formação para exercer esta função e portanto precisaram aprender tudo sozinhas e na marra. São mulheres que abandonaram o trabalho e o próprio núcleo familiar para cuidar de alguém e que, principalmente, não recebem nada por isso.

É comum que a família ache que a mulher solteira e sem filhos está naturalmente capaz de cuidar (sozinha) da pessoa idosa que agora se tornou dependente. Aliás, é comum que os homens e até outras mulheres usem estas condições para pressionar e manipular emocionalmente esta mulher.

Cuidar de uma pessoa idosa, muitas vezes dependente para a maior parte das atividades diárias da vida, é uma função desgastante na sua essência. De modo geral, a família impõe a uma única mulher a responsabilidade e o peso de ser grata pelos cuidados outrora recebidos desta pessoa. Enquanto isso, outros filhos e netos que se beneficiaram igualmente ou até mais do trabalho, da renda e do carinho daquele que hoje inspira cuidados se eximem de compromisso e dão as mais variadas desculpas para não cuidar.

Quando se recusa a seguir abraçando sozinha este cuidado, a mulher é muitas vezes chamada de mal-agradecida pois não está cuidando de quem cuidou dela. Embora quem a acusa nunca tenha colaborado.

Há questões subjetivas importantíssimas envolvidas nesse processo. São pontos relevantes na percepção subjetiva desta mulher em relação ao que ela vive: cuidar de um bebê costuma ser percebido como algo positivo, já que, a cada dia, um bebê aprende algo novo, o que o torna mais independente, até o momento que ele precisa pouco ou quase nada de seu cuidador para sobreviver.

Com a pessoa idosa, a lógica é contrária. O tempo passa e ela está cada vez mais dependente de quem realiza seus cuidados. De uma pessoa com demência, espera-se que o passar dos anos lhe limite o banhar-se, o andar, o falar, o comer, o virar-se na cama. Na maior parte dos dias, estas mulheres não nutrem esperanças ou expectativas de melhora. Pelo contrário, o peso deste cuidado vai ficando ainda maior. Sem falar no peso físico que é dar banho, levantar e virar na cama um adulto de 60, 80, 100 quilos. Sem falar no desgaste mental de ter de se lembrar de 8, 10 medicamentos por dia. Sem falar em ter de se acostumar com as fezes, a urina, as feridas, o vômito, a sonda, a agressividade sem nunca ter sido treinada para isto. Sem falar em ter de aguentar dias e dias dormindo em uma cadeira em internações hospitalares por conta de instabilizações clínicas. E, por fim, ter de ouvir calada (daqueles que nunca aparecem) que a culpa é sua, a cada novo adoecimento, seja por infecção, seja por que o intestino parou, seja por que a ferida piorou, seja por que um novo AVC aconteceu.

Lembro-me de um caso que foi emblemático na minha percepção de como estas condições estão mergulhadas em um machismo muito perverso. Uma paciente querida, moradora de uma comunidade, cuidava do pai e do irmão acamados. O pai tinha tido um AVC. O irmão havia sofrido um acidente grave no trabalho o que lhe trouxe um dano neurológico grave e irreversível.

Primeiro ela começou a passar as noites na casa onde os dois estavam. De dia, ia até eles nos horários das medicações e para ajudar a moça que cuidava da limpeza em alguma tarefa. Ela tinha mais outros dois irmãos. Um era pedreiro e o outro funcionário público. No começo, eles pagaram uma outra mulher para limpar a casa, o que acabava facilitando um pouco a vida da minha paciente.

Acontece que, em algum momento, eles acharam justo não ajudar com nada. Esta mulher passou a ter que ficar dia e noite na casa cuidando de tudo. Seu marido não aceitou a situação e eles se separaram. Os filhos reclamavam de sua ausência, mas não havia muito a ser feito. Eram eles os únicos que a ajudavam fazendo compras, ou até cuidando dos dois para que ela tomasse um banho!

Num momento de exaustão, ela se sentiu mal e me procurou no Centro de Saúde. Há 12 anos, tempo que cuidava dos dois sem nenhuma ajuda, ela não fazia um simples exame preventivo do colo do útero. Fizemos. Era um câncer já avançado invadindo outros órgãos. Ela morreu. Morreu de tanto cuidar.

Silvia Federici propõe estas reflexões sobre o trabalho doméstico feminino não remunerado e invisibilizado como uma forma de exploração para a sustentação do sistema capitalista. Afinal, é este trabalho que permite que homens saiam para trabalhar. Ao individualizarmos o debate apontando culpados dentro de cada caso que presenciamos, acabamos por despolitizá-lo. É preciso enxergar o caráter sistêmico destas condições que aprisionam mulheres e agir em busca de soluções sistêmicas. Contudo, não há como não apontar os absurdos.

Este processo de silenciamento é violento e doloroso. Quando a família toda se compromete e prioriza o cuidado, vidas de mulheres são poupadas. Literalmente.

Após a morte da minha paciente, os dois irmãos se organizaram e passaram a pagar 4 mulheres para fazerem as funções que antes julgavam que a irmã deveria fazer sozinha. Elas se revezavam em turnos de 12 horas. Uma dessas mulheres desistiu do emprego porque se sentiu muito sobrecarregada. Ela se sentiu sobrecarregada fazendo, durante 1 mês, ¼ do trabalho que minha paciente fez durante 12 anos.

E ela não estava errada.