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Júlia Rocha

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'O capitalismo produz crises', diz membro do comitê do PCB

Lula e o presidente chileno, Gabriel Boric - Ricardo Stuckert/PT
Lula e o presidente chileno, Gabriel Boric Imagem: Ricardo Stuckert/PT

Colunista de Ecoa, em Belo Horizonte (MG)

26/05/2023 06h00

O povo chileno foi às urnas no último dia 7 de maio para escolher seus representantes no Conselho Constituinte do Chile. A eleição representou uma derrota acachapante para o atual presidente, Gabriel Boric, eleito no final de 2021.

Para entender o Chile de 2023 e os recentes acontecimentos políticos no país, conversei com Gabriel Lazzari, membro do Comitê Central do PCB

Ecoa: O Chile passou por décadas de implementação e aprofundamento de políticas neoliberais. Significa dizer que transformaram tudo aquilo que antes era entendido como um direito (saúde, educação, segurança, cultura, lazer) em mercadoria. Você poderia explicar como isso se deu e em que contexto político isso foi possível?

Gabriel Lazzari: Para explicar o Chile de alguns anos atrás, precisamos entender o processo de desenvolvimento do sistema capitalista-imperialista global. O capitalismo produz, necessariamente, crises. Isso porque a forma de acumulação de riquezas no capitalismo, que é privada, entra em choque com a necessidade de socialização do trabalho. É a boa e velha luta de classes. Acontece que, já no começo da segunda metade do século 20, esse modelo de acumulação necessitava aumentar a exploração sob os trabalhadores - e aí o caso chileno foi excepcional.

Em 1970, foi eleito um governo composto por forças consideradas de esquerda, encabeçado por Salvador Allende, que buscava, a seu modo, construir uma "via chilena para o socialismo". Foi uma tentativa de derrotar o capitalismo por dentro das instituições do Estado burguês.

Tendo avançado em várias pautas sociais e chegando próximo a uma crise revolucionária, o Chile foi visado por sua própria burguesia e pelos EUA, que deram um golpe de Estado em 1973. Este golpe foi liderado pelo general Augusto Pinochet.

No contexto de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, foi a repressão do Estado e a gana da burguesia chilena em reverter as conquistas dos trabalhadores durante os três anos do governo Allende que possibilitoram esse ataque tão brutal aos serviços públicos e aos direitos sociais. O Chile foi um laboratório dessas políticas burguesas de mercantilização total da vida conhecidas como "políticas neoliberais".

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Gabriel Lazzari, membro do Comitê Central do PCB
Imagem: Reprodução

A luta do povo chileno por direitos trouxe de volta ao debate público pautas históricas das mulheres, dos povos indígenas, da comunidade LGBTQIA+ e de outras minorias. No entanto, muitos apontam que parte relevante dos votos do atual presidente foram apenas de quem não queria eleger José Antonio Kast, conhecido como o "Bolsonaro do Chile". Afinal, quais foram as forças que tiveram maior peso na eleição de Boric?

O processo de luta da classe trabalhadora chilena no último período é cheio de contradições importantes de serem analisadas. Se, por um lado, as grandes manifestações e mobilizações do chamado "estallido social" de fato conseguiram colocar centenas de milhares de trabalhadores em luta, por outro lado, elas não conseguiram imprimir ainda uma lógica de luta organizada da classe trabalhadora com consciência de classe, ou seja, essas lutas de massas ainda não adquiriram um conteúdo de classe revolucionário.

Por isso mesmo, as eleições chilenas tinham um caráter de "ou vai ou racha", de momento de virada para a política do país - na consciência média da massa, ressoava uma opção em apoio às mobilizações (e seu conteúdo de defesa dos direitos sociais) contra uma opção contrária às mobilizações.

Eu digo isso inclusive para evitar essa visão de que a situação se desenrola "ou" pelo peso das forças mais ligadas à classe trabalhadora, "ou" pelas forças da burguesia - porque efetivamente, as forças que se dispuseram a compartilhar o governo de conciliação de classes de Boric acabam fazendo um papel semelhante ao se portarem como gestoras do capitalismo.

Tanto é assim que logo na sequência da eleição, justamente por falta de explicação e de direção política efetiva, a maioria da sociedade chilena votou contra o novo texto constitucional e manteve a constituição da ditadura pinochetista.

Efetivamente, no processo eleitoral, faltou a expressão independente e revolucionária da classe trabalhadora, e isso auxiliou na confusão da classe depois das eleições, com Boric falando em governar "para todos os chilenos" e não para os trabalhadores.

Considerando a intensa mobilização popular ocorrida antes das eleições presidenciais de 2021 e os anseios que elas amplificaram, me parece razoável dizer que a base popular de apoio do presidente então eleito era uma base progressista até bastante radicalizada em suas pautas por direitos. Ocorre que, como você bem lembrou, apenas seis meses depois da posse do novo governo, Boric sofreu uma derrota acachapante e viu o texto constitucional rechaçado pela maioria da população. O que explica esse movimento?

A realidade dos fatos demonstra exatamente isso: uma liderança política aparece como possível expressão dos anseios da classe trabalhadora, mas, por não levar a ferro e fogo uma política de classe, afunda o próprio movimento que o elegeu. Esse é o caso de Boric.

A responsabilidade não é apenas "do governo", mas é justamente da dificuldade em uma alternativa não revolucionária manter uma agitação correta em termos da independência de classe junto à classe trabalhadora chilena.

Sem essa expressão, claramente foram criadas expectativas (mais uma vez) sobre as possibilidades de um "capitalismo humanizado" no Chile de Boric e isso fez arrefecer o peso das mobilizações da classe - e suas possibilidades históricas, mesmo sem uma revolução - no conjunto da sociedade chilena.

Falar o "que poderia ter sido feito" também não me parece 100% a pergunta correta: a coalizão de Boric é uma coalizão de conciliação de classes, da tentativa de gerir o capitalismo e, ao mesmo tempo, oferecer soluções para a classe trabalhadora e os setores e povos oprimidos do Chile.

Se Boric tivesse, hipoteticamente, enfrentado o grande capital e começado uma política de enfrentamento que combinasse a pressão da classe trabalhadora organizada e medidas do governo no sentido da ruptura com o capitalismo, isso possivelmente aumentaria a força da classe e criaria um cenário mais favorável para derrubar a constituição pelos meios de luta independentes da classe. Mas aí não seria Gabriel Boric.

A eleição de 7 de maio impôs uma nova derrota para a esquerda chilena. Há saídas para Boric e o seu governo ou já é tarde pra qualquer novo rumo? A mobilização popular, por exemplo, seria capaz de frear esses avanços ultraconservadores?

Sobre se há saídas para Boric e seu governo, teríamos que nos perguntar: "Saída para qual objetivo?". Se for uma saída para manter a governabilidade e a gestão do capitalismo no Chile, com certeza há saída - basta continuar o que estão fazendo, acenando para a burguesia chilena e deixando de lado as pautas dos trabalhadores.

Agora, se a saída é para ter uma política da classe trabalhadora, a única forma é se o próprio governo se subordinasse aos interesses objetivos da classe, passando medidas de afronta direta ao capital por meio de decretos ou coisa que o valha, e convocando os trabalhadores a ocuparem novamente as ruas por suas reivindicações. Mas isso seria contra a própria essência do governo de conciliação de classes, que tem buscado saídas institucionais e, digamos, "cosméticas", sem atacar diretamente a estrutura produtiva do país.

A única forma de frear qualquer ataque da burguesia segue sendo a mobilização popular. No entanto, temos que ver quais são as condições subjetivas da classe trabalhadora chilena: ela está desacreditada das ferramentas que forjou - entre elas, um governo nacional! - justamente porque essas ferramentas não serviram para seus objetivos. Ou seja: a mobilização da classe trabalhadora independente do governo será a única arma. Isso pode acontecer espontaneamente, como o próprio "estallido social"? Pode. Mas novamente ficará à deriva se não houver forças políticas decididamente a seu lado para apontar um rumo anticapitalista e anti-imperialista para essas mesmas lutas. E se isso acontecer, a receita está dada: a desilusão com o "amplo espectro da esquerda" é a regra, e isso só pode vir a alimentar ainda mais a burguesia.

Há um paralelo entre a história recente do Chile com o que vivemos no Brasil nos últimos anos? Em que medida a situação chilena de hoje pode ser vista como um alerta para o Brasil?

Há alguns possíveis paralelos, como a derrota eleitoral da extrema direita (Antonio Kast no Chile, Bolsonaro no Brasil), mas um histórico muito diverso. As mobilizações do "estallido social" se assemelham mais a outro episódio da história do Brasil: as chamadas "jornadas de junho de 2013".

O mesmo impulso contestatório, as mobilizações massivas, aparecimento de novos atores no campo do movimento social. A diferença é que, em 2013, a burguesia brasileira foi capaz de "dirigir" as massas em luta para seus objetivos ideológicos e eleitorais - a "luta contra a corrupção", os investimentos públicos etc. - quando o governo Dilma se eximiu de disputar as ruas, apelando por "ordem" no país.

No Chile, ao contrário, a extrema direita estava no poder e forças do amplo espectro da esquerda conseguiram impor uma dinâmica que não resultou, imediatamente, em derrota, mas na vitória eleitoral. Boric foi expressão dessas lutas e ao mesmo tempo foi o fim delas mesmas.

No Brasil, a eleição de Lula foi, de alguma forma, também expressão das lutas contra o Bolsonaro - mas de certa forma "apesar" do PT, que inclusive buscou sufocar os movimentos contrários ao governo Bolsonaro-Mourão no final de 2022.

O alerta para nós é claro - e não vem só do Chile, mas da experiência acumulada das lutas dos trabalhadores: a ilusão na governabilidade do Estado burguês como ponto de apoio para a luta dos trabalhadores só pode resultar em derrota, porque não afasta a classe das amarras ideológicas do próprio capitalismo. Isso, tragicamente, o Chile de 1973 nos ensinou, não o de 2023. O alerta é o mesmo de todas as décadas de luta contra o capitalismo - a classe trabalhadora precisa se apresentar com força própria no cenário político nacional e internacional, independente de quem governe.

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