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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Doutora, quero remédio pra tirar do peito essa angústia, pra eu reagir'

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

26/10/2022 06h00

Karen era uma mulher jovem que dividia a vida, a casa e as contas com a mãe e a filha pequena. Desempregada há 2 anos, trabalhava como entregadora de comida com sua moto, até que a vida virou do avesso.

Começou a consulta admitindo culpa:

"Doutora, eu sei que isso não é coisa que a gente normalmente fala para médico, mas eu tomei algumas decisões erradas e acabei me dando muito mal. Eu não sei se você se lembra, mas eu sou filha da Lourdes, sua paciente."

"Lembro, sim."

Lourdes era uma senhora com seus cinquenta e poucos anos que havia sofrido um AVC no mês anterior. Estava bem. Conseguira sair praticamente sem sequelas, mas o episódio trouxe à tona diversas questões de saúde que demandavam cuidados, remédios, consultas, gastos com transporte para os locais de atendimento e o afastamento do trabalho.

"Pois é, doutora. Decidi parar de trabalhar temporariamente para passar esse mês cuidando dela e da minha filha. Minha esperança era que depois desse período minha mãe estaria boa para pelo menos me ajudar com a minha pequena. Foi uma decisão errada. Ela segue insegura para ficar sozinha com a neta e eu simplesmente estou há 1 mês sem fazer entrar dinheiro na minha casa. A minha mãe, que era quem somava comigo na hora de pagar as contas e ainda cuidava da minha filha pra eu poder trabalhar mais a noite com as entregas, agora não pode mais trabalhar e não consegue mais me ajudar cuidando da Bia. Durante o dia eu não consigo mais trabalhar porque tirei a Bia da creche por falta de dinheiro. Ficamos nós três o dia todo em casa. E o dinheiro só sai. Muita despesa com ela: médico, remédio, consulta, táxi. Essa é a minha história. Mas como eu te disse, essa é a parte que não é um problema de contar para um médico. O que eu vim te contar é que eu estou completamente perdida, deprimida, sem ação, sem forças até para fazer o básico."

Karen não conteve a emoção. Lourdes era faxineira, não tinha carteira assinada e, por enquanto, ainda não havia conseguido acessar um direito ou benefício social sequer.

"O dinheiro está começando a faltar. Aluguel atrasado, conta de luz atrasada. Já vai fazer uma semana que peguei dinheiro emprestado para fazer o supermercado, doutora. Parece mentira. Eu fui com os duzentos reais no supermercado e voltei com três sacolas. Vim carregando tudo sozinha. Comida que não vai durar nem uma semana."

Perguntei com medo da resposta:

"Como você acha que eu posso te ajudar?"

"Doutora, eu vou te falar a verdade. Sem enrolação. Eu quero um remédio pra tirar do meu peito essa angústia. Um remédio pra eu conseguir reagir. Alguma coisa que me faça enxergar uma luz no fim do túnel."

Karen avaliou com frieza depois de suportar o quanto pôde a dor do desamparo. Um mês lutando para cuidar da melhor forma de sua mãe, gastando o que tinha e o que não tinha. Um mês se virando para tentar trabalhar com uma filha pequena que agora não ia mais para a escola já que o dinheiro havia acabado e não havia vaga em escola pública no bairro onde morava.

No início da nossa conversa Karen disse que seus problemas eram consequência de decisões erradas que ela havia tomado. Não eram.

Sua mãe, sem carteira assinada, adoecera sem que lhe restasse nenhum direito trabalhista. Sem condições de trabalhar tornara-se uma dependente da filha que há pouco tempo ajudava. Sem um sistema de saúde e de transporte público adequados, o pouco dinheiro que tinha se esvaía em consultas particulares e remédios caros. Sem ter com quem deixar a filha, Karen se via de pés e mãos atados na busca pelo sustento das três. Seu antigo sub-emprego como entregadora não lhe ofereceu nada desde que se vira impedida de seguir trabalhando pela condição da mãe.

Naquele dia, outras tantas Karens e Lourdes me procuraram com problemas muito semelhantes. A dor de todas elas era a dor do desamparo. A dor de quem trabalha feito máquina por toda uma vida e que sequer conquista o direito de cuidar da própria saúde.

Como médica que assiste o espetáculo da vida na primeira fila, posso dizer que estas pessoas que me procuram não se falam, não compartilham seu sofrimento umas com as outras. E assim, impedidas de viver uma vida coletiva, seguem com a certeza de que esses problemas são só seus. São frutos de decisões erradas que tomaram. São, por isso, pessoas corroídas pela culpa. Acordam e vão dormir com a sensação de que falharam.

Tento, em vão, fazer a minha parte.

"Já pensou se tivéssemos aqui no bairro escola boa para todas as crianças? Já pensou se você conseguisse tudo que precisa para os cuidados da saúde da sua mãe no SUS? Já pensou se ela tivesse garantidos os direitos trabalhistas dela? E se você estivesse recebendo o seu seguro desemprego?"

Karen não havia pensado em nada daquilo.

"Seu problema não é a doença da sua mãe. Todo mundo pode adoecer um dia. Seu problema não é ter decidido parar de trabalhar para cuidar dela. Seu problema é o mesmo de tantas pessoas que me procuram aqui todos os dias. Nos faltam direitos, não antidepressivos."

Sem saída, fiz a receita e chamei o próximo paciente. O desamparo é um filme difícil de assistir.