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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pastor Isidório é defensor de verdadeiros manicômios do nosso tempo

Pastor Isidório, deputado federal que esteve presente na posse de Lula no Congresso - Reprodução
Pastor Isidório, deputado federal que esteve presente na posse de Lula no Congresso Imagem: Reprodução

Júlia Rocha*

Colunista do UOL

09/01/2023 06h00

Era 1º de janeiro de 2023 em Brasília. Lula cumpria o protocolo de sua posse como presidente quando, rompendo o silêncio que a formalidade exigia, um homem aos gritos levantou e sacolejou uma Bíblia, livro sagrado para os cristãos. Era o deputado eleito Manoel Isidório de Santana Júnior, pastor e policial militar aposentado.

Nas redes sociais, houve instantâneo interesse para se descobrir quem era o sujeito de comportamento, digamos, inusitado. Pastor Isidório ou Pastor Sargento Isidório é velho conhecido de muitos trabalhadores do SUS. Em especial, daqueles que lutam por adequada assistência à saúde de pessoas em uso de álcool e outras drogas.

A história da luta antimanicomial no mundo e no Brasil é marcada por enfrentamentos duríssimos a quem ganha dinheiro, status e prestígio promovendo tratamentos que sequer merecem esse nome. E é sobre isso que precisamos falar com urgência e com profundidade.

O referido deputado é hoje um dos principais nomes entre os congressistas a levar a lógica manicomial para o coração da política brasileira. Dentro do parlamento, o religioso tem amplo espaço para defender e, mais do que isso, conseguir milhões em recursos públicos para comunidades terapêuticas.

Segundo ele, estes são apenas centros de reabilitação e cuidado de pessoas em uso de álcool e outras drogas. Para os movimentos de luta antimanicomial, estes lugares são, via de regra, verdadeiros campos de concentração onde toda a produção científica a respeito de drogadição e cuidados em saúde mental fica do lado de fora.

O que o referido deputado chama de tratamento, pesquisadores, trabalhadores e egressos destes espaços chamam de pseudo-ciência, charlatanismo, tortura, trabalho forçado e catequese obrigatória.

Como não há qualquer preocupação em embasar o cuidado prestado no conhecimento científico acumulado sobre o tema até hoje, o discurso do deputado acaba se tornando um exemplo bastante ilustrativo daquilo que se passa em centenas de comunidades terapêuticas espalhadas pelo país.

Uma busca rápida pelos termos tortura, jejum e comunidades terapêuticas em qualquer site de busca na internet mostrará reportagens, artigos, registros de áudio e vídeo de verdadeiras atrocidades cometidas dentro desses lugares.

Muitos pesquisadores brasileiros se dedicaram a compreender este fenômeno de forma cuidadosa e com rigor científico. Desses estudos, nasceram publicações e, a partir delas, os debates dentro e fora dos muros das universidades foram sendo ampliados.

Comunidades terapêuticas são, em sua esmagadora maioria, os manicômios do nosso tempo. São instituições da violência que devem ser combatidas por todas as pessoas que se reivindicam defensoras dos direitos humanos.

E dizer que nem todas elas são ruins ou inadequadas equivale a dizer que nem todas as pessoas são racistas. Ou ainda, que nem todo homem é machista. Isso não muda o fato de que pessoas negras e mulheres morrem diariamente em consequência do racismo e do machismo.

É o caso clássico em que a exceção é usada deliberadamente para escamotear a duríssima realidade a qual são submetidos seres humanos em sofrimento e vulnerabilidade. Trata-se de uma violência estrutural e para enfrentá-la é preciso ter a ousadia de questionar essa estrutura.

É comum que pessoas leigas questionem os trabalhadores do SUS que denunciam o financiamento público de Comunidades Terapêuticas. Esse questionamento nasce principalmente do medo da desassistência.

Com frequência, os movimentos da luta antimanicomial são acusados de quererem tirar dessas pessoas e de suas famílias o único recurso que permitiria que elas se recuperassem do vício e seguissem a vida sem as drogas.

Vale, por este motivo, pontuar aqui algo importantíssimo: a dependência química é uma questão muito complexa. Os fatores que levam alguém a usar uma substância psicoativa são diversos. As condições que favorecem o desenvolvimento do vício propriamente dito são igualmente múltiplas. Nem todos aqueles que usam vão fazê-lo de forma abusiva ou danosa para o outro.

E, sim, estas pessoas que fazem uso abusivo e danoso de qualquer substância psicoativa lícita ou ilícita necessitam de um acolhimento especializado que conte com profissionais de múltiplas áreas. Não se trata de lutar contra a lógica manicomial replicada nas comunidades terapêuticas e não querer construir nada em seu lugar. Estas pessoas precisam de assistência verdadeira.

No SUS, os serviços capazes de promover este atendimento qualificado e transdisciplinar se articulam na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e na RAS (Rede de Atenção à Saúde). Contudo, o desmonte do sistema público de saúde promovido pela lógica neoliberal que mercantiliza o acesso à saúde criou um cenário de completo desamparo para estas pessoas e suas famílias.

Ao mesmo tempo que passam a não encontrar respostas as suas demandas no SUS, acabam se tornando presas fáceis de um discurso pseudo-científico, carregado de preconceito religioso, punitivismo e proibicionismo.

Façamos esta reflexão de forma mais aprofundada: isso que se promove dentro das comunidades terapêuticas, a saber, agressões e castigos físicos, imposição de jejum, catequese forçada, e tratamentos ultrapassados, com técnicas e discursos já superados há décadas, pode afinal ser chamado de assistência à saúde? Acaso, uma abordagem a uma pessoa em sofrimento mental que não considera os avanços científicos e impõe cárcere e violações diversas de direitos muito básicos como alimentação pode ser chamado de tratamento?

Há que se considerar também que a agudização do sofrimento psíquico imposta pelas condições sociais e econômicas contribui de forma evidente para o agravamento do sofrimento destas pessoas e, consequentemente, levam a uma intensificação do uso abusivo de substâncias psicoativas na sociedade. Isso não é nenhum segredo e está muito bem estabelecido.

Num cenário de completo desamparo experimentado por milhões de desalentados, é previsível que o uso abusivo de drogas esteja cada vez mais presente. Em tempos neoliberais, o acirramento da luta de classes explode em crescimento da miséria e de todas as suas consequências. O uso abusivo de drogas é só mais uma delas.

Em condições socioeconômicas tão adversas, o que resta a quem dorme e acorda em condições de miséria? Sem moradia, sem formação profissional, sem acesso à educação, sem acesso qualificado à saúde, sem renda, sem trabalho, sem vínculos comunitários, sem vínculos familiares, sem comida, sem saneamento básico, sem lazer.

Responda: que resta? O uso de drogas e principalmente o desenvolvimento do vício não acontece somente pelo potencial gerador de dependência da substância de forma isolada. É preciso entender o lugar que aquele uso ocupa na vida do sujeito. E obviamente, uma realidade de desamparo nos deixa muito mais vulneráveis ao abuso.

Para nós, trabalhadores do SUS que enfrentamos essa realidade todos os dias, é frequente o questionamento: como não se entorpecer diante de uma vida de tantas privações e violências?

Mesmo podendo compreender a complexidade e os múltiplos fatores envolvidos neste fenômeno, a sociedade tende a olhar para esta pessoa e seu vício de forma a silenciar esses problemas sociais, econômicos e políticos, tratando esta situação cheia de camadas como se o único problema alí fosse a droga, pura e simplesmente.

Com essa mentalidade que determina que "a droga é o problema!" todo o resto é esquecido e o foco do tratamento se torna impedir que aquela pessoa use a substância. Se nada mais é importante, a meta é a abstinência. Fim! Para apenas uma causa, é oferecida apenas uma única solução: a exclusão social através da internação.

Na lógica manicomial perpetuada pelas comunidades terapêuticas, um problema cheio de nuances como este pode ser tratado retirando esta pessoa do seu ambiente e trancafiando-a em um espaço longe do seu território de moradia, dos seus amigos, dos lugares que frequenta.

Desavisados podem dizer: "Que maravilha! Assim ele não usa a droga de jeito nenhum." E por um tempo isso pode até acontecer, mesmo.

Contudo, é urgente que toda a sociedade avalie de forma crítica o que ocorre com estas pessoas quando elas retornam para suas casas e para o convívio de antes da internação. As recaídas e o retorno ao uso abusivo de drogas são a regra e não a exceção.

A culpabilização do indivíduo que não leva em consideração o seu contexto de vida é a chave que dá suporte a este tipo de abordagem. Se o problema é que esta pessoa é fraca, incapaz ou doente, a única coisa que precisamos fazer é consertá-la. Aquele corpo deve ser remendado com remédios, jejuns, tortura psicológica e física, assédio moral e uma infinidade de punições para que se adeque.

No lugar de ser tratado como alguém que adoeceu em consequência das inúmeras opressões que sofre cotidianamente, esse sujeito é simplesmente tido como um pecador aos olhos do pastor, um criminoso aos olhos do sistema de justiça, ou um doente aos olhos dos profissionais de saúde.

Convenhamos. É mais fácil prescrever um remédio e trancafiar uns miseráveis recebendo milhões de verba pública para isto do que aceitar que precisamos transformar a realidade deles.

São explícitas as violências resultantes dessa visão objetificante e reducionista de quem se propõe cuidar. É aquela violência desumanizante que torna tais lugares similares aos campos de concentração. De que forma uma relação tão objetificante pode ser terapêutica? Como não tomá-la como o resultado da relação de prevaricação daqueles que se sentem fortes porque têm as regras do jogo em suas mãos?

Ao final deste processo, a pessoa revitimizada nesse sistema complexo de violações ainda segue a vida a carregar a cicatriz de todo esse processo: o estigma por ter sido internado. Depois de ter passado por isso, torna-se ainda mais difícil conseguir emprego e renda. Sem condições para garantir uma vida digna para si, as condições para nova recaída e retomada do uso abusivo estão postas.

Em uma sociedade capitalista, na qual a desigualdade e a miséria são parte da sua sustentação, a comunidade terapêutica tem como função primeira a privação de liberdade para "limpar as ruas". O teor higienista está evidente. Basta ver as intervenções truculentas da polícia em São Paulo na denominada Operação Caronte (sim, o barqueiro de Hades que carrega as almas dos mortos, na mitologia grega).

O objetivo declarado das comunidades terapêuticas, que pode ser acompanhado do desejo pessoal ou familiar de cessar o uso das drogas, frequentemente não é alcançado. As taxas de recaída de drogas como crack e álcool são altas e, por vezes, acontecem dentro das próprias CTs.

Como característica de sistemas presidiários, há contrabando e tráfico de drogas, isto é, a permissividade com o uso importa menos do que o objetivo menos explícito: a segregação. A abstinência como horizonte único de tratamento mais mistifica do que altera a realidade do usuário. Mais culpabiliza do que trata. Mais individualiza do que responsabiliza.

É necessário construirmos um amplo debate com toda a sociedade para questionarmos o financiamento público desse tipo de instituição. É urgente a mobilização popular em prol do financiamento das políticas de assistência à saúde mental no SUS. Nesse sentido, as ideias propagadas por políticos como o deputado Isidório devem ser combatidas e derrotadas

As posturas punitivistas e proibicionistas no enfrentamento destas questões nos trouxeram até aqui. Não faz o menor sentido seguir repetindo a mesma postura esperando que isso traga resultados melhores. Não trará.

*Esta coluna foi em escrita em parceria com Iago Chaves, psicólogo do SUS em Alfenas, Minas Gerais, e militante da Luta Antimanicomial.