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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Vai pra Cuba': história recente da ilha revela a crueldade do bloqueio

Cuba - história recente revela a crueldade do embargo - Júlia Rocha
Cuba - história recente revela a crueldade do embargo Imagem: Júlia Rocha

Colaboração para Ecoa de Cuba

28/01/2023 05h00

Sendo alguém de fora de Cuba, sobretudo se estamos imersos em sociedades de ideologia liberal, as poucas vezes que escutamos ou lemos sobre Cuba na internet ou nos telejornais brasileiros, sempre ou com pouquíssimas exceções estão tentando nos convencer que aqui na ilha se vive mal e que todos os problemas do país são consequências da incapacidade do Socialismo Cubano de responder de forma efetiva às demandas de sua população.

Durante uma conversa com Tony e Irma, o casal que me acolhe em Havana, lembranças dos protestos que aconteceram em Cuba em 2021 tomaram a pauta.

Era 11 de julho daquele ano e o que vimos na televisão e na internet não foi diferente do de sempre: muitas notícias de grandes protestos tentavam nos convencer que todo o povo cubano havia saído às ruas contra o governo em plena pandemia.

A história não foi bem esta. Por isso, hoje quis trazer a você que habitualmente não lê sobre Cuba e não está rotineiramente em contato com o debate político interno do país, um outro ponto de vista sobre este dia importante para a história recente da região. Já que são tão poucas as vozes e os meios que tentam amplificar o que diz o povo trabalhador cubano, que este seja mais um espaço para isto.

São muitas as sensações que estar em Havana me causam. Porém, a mais impressionante é que pessoas comuns por aqui falam de política com muita frequência e com muita profundidade.

Para uma brasileira, ver jovens tendo tempo livre e acúmulo de leituras para debater e elaborar questões complexas sobre seu país e sendo capazes de realizar uma leitura muito completa e sofisticada da realidade social e política cubana é algo verdadeiramente impressionante. Enquanto em Cuba eles constroem o país e ditam seus rumos, no Brasil, nossos jovens estão quase todos empenhados em não serem presos injustamente e não serem mortos pelas mãos da polícia, seja em nome da guerra às drogas, seja na luta por moradia e por terra. Outros milhões, quando encontram trabalho, estão sendo explorados 10, 12 horas por dia em empregos precarizados e sem acesso à lazer, cultura e educação.

Aqui em Cuba, trabalhadores das mais diversas profissões e faixas etárias debatem política de forma muito qualificada no cotidiano. E é sobre uma dessas conversas que escrevo hoje.

Na sala por onde entram sol e brisa de uma manhã tranquila do inverno cubano, escuto e tomo nota de tudo que me dizem Irma e seu companheiro Tony.

Eles generosamente me contam o que sabem sobre a história recente do país em uma verdadeira aula que replico na íntegra abaixo:

"A Pandemia para Cuba foi economicamente devastadora. O turismo, principal atividade econômica do país, foi paralisado por completo. Isto já seria isoladamente catastrófico. Contudo, para se compreender a história recente de Cuba e os acontecimentos que culminaram com os protestos de 11 de julho de 2021 e geraram imagens e comentários anticomunistas que rodaram o mundo é necessário voltar no tempo alguns anos, especialmente no que diz respeito as relações entre Cuba e os Estados Unidos.

O ex-presidente Donald Trump, em seu governo de extrema direita, editou mais de 240 novas regras de restrições à Cuba. Estas novas regras se somaram as outras que já compunham o bloqueio violento imposto pela maior potência imperialista da atualidade ao nosso país.

Já existiam, por exemplo, punições previstas para navios que viessem a Cuba trazendo mercadorias e petróleo. Segundo as regras anteriores, a embarcação que atracasse em Cuba deveria cumprir um longo período sem atracar em portos nos Estados Unidos. Não bastasse os transtornos causados por medidas como esta, os Estados Unidos resolveram impor restrições não só a um navio mas a toda a frota da empresa transportadora. Caso uma de suas embarcações viessem trazer produtos a Cuba, todas as embarcações da empresa estariam proibidas de atracar em portos americanos por meses.

Se antes já existiam ameaças de represália a empresas e países que vendessem petróleo para Cuba, agora foram impostas altíssimas multas e restrições que inviabilizavam qualquer transação. Os pagamentos nas negociações internacionais em dólar eram inviabilizaria em todas as instituições financeiras.

No início do período de enfrentamento à pandemia, o governo cubano se dirigiu aos seus parceiros comerciais habituais. Aqueles com quem sempre havia mantido boas relações comerciais, especialmente para aquisição de insumos médicos. Qual foi a surpresa do governo ao saber que aqueles nossos parceiros comerciais costumeiros estavam impedidos de nos fornecerem respiradores e medicamentos para o cuidado em saúde.

Um caso emblemático foi que durante os meses de agravamento da Pandemia precisamos importar uma peça que compunha a máquina que produzia o oxigênio usados nos nossos hospitais. Contudo, nos proibiram de trazê-la. Ficamos sem poder produzir o oxigênio para tratar os pacientes mais graves da covid-19. As regras do bloqueio proibiram também que os navios nos trouxessem balões de oxigênio de outros países. Queriam nos sufocar. Literalmente.

O impacto de tantas adversidades na vida das pessoas chegou rapidamente. Não havia farinha para a fabricação dos pães. Não havia medicamentos e outros insumos médicos. Não havia petróleo, fertilizantes. Proibiram a entrada de quimioterápicos para tratamento de crianças e idosos com câncer. Muitas fábricas encerraram suas atividades por falta de energia e até por falta de alimento para os seus trabalhadores.

As privações eram gravissimas, todavia elas não explicam sozinhas a conjuntura que levou aos protestos de 21 de julho de 2021. Há que se considerar o envio em massa de informações falsas e de análises enviesadas vindas de fora, especialmente de Miami.

São grupos organizados muito fortes e que investem dinheiro de forma coordenada para promover desinformação sobre Cuba dentro e fora do país. Mesmo diante de todas as injustiças e atrocidades relacionadas ao bloqueio, tentam responsabilizar o governo e o regime pela totalidade dos problemas vividos aqui.

Foram estas informações distorcidas recebidas pelas redes sociais que convenceram muitas pessoas a irem às ruas e promoverem vandalismo, coisa que não se vê normalmente por aqui.

Era um domingo de manhã quando muitas dessas pessoas caminhavam chamando outras pessoas para se juntarem a eles. Como nunca vimos aqui, atiraram pedras na polícia desarmada. Por aqui é muito raro haver policiais com armas na rua. No mesmo dia, destruíram e queimaram uma viatura policial.

Houve uma reação imediata e unificada dos cubanos que defendem a revolução e seu legado. Isso se tornou uma demonstração incrível de força do nosso país. No mesmo dia, milhares de cubanos saíram às ruas para manifestar apoio ao governo.

Não somos tolos. Sabíamos que a situação naquele momento era gravíssima e que precisaríamos tomar medidas para solucionarmos os diversos problemas gerados pelo bloqueio. Porém sabíamos que o melhor caminho não era enfrentar o governo de forma cega e enganados pelo imperialismo estadunidense.

Veja que com toda a população vacinada e a queda drástica dos números de infectados pela covid-19 pudemos reabrir o país para o turismo. Isso trouxe um grande alívio econômico mas ainda é insuficiente.

Ainda seguem fortes as tentativas de estrangular economicamente o país. Estão inclusive fazendo propaganda mentirosa sobre a nossa infraestrutura para o turismo. Aos quatro cantos começaram a dizer que não há condições em Cuba de receber ninguém. Veja, vivemos uma vida modesta mas digna. E para os turistas não falta absolutamente nada. Inclusive para aqueles que querem pagar por acomodações luxuosas nos hotéis.

Temos nossos problemas mas vamos criando as nossas soluções. Ainda convivemos com interrupções eventuais do fornecimento de energia. Em algumas regiões mais e em outras menos. Já melhorou muito do que se via há um ano ou um pouco mais. O governo age para buscar fontes renováveis e mais limpas. Energia solar, eólica e outras tantas.

A produção de alimentos vem sendo normalizada e o desabastecimento que se via há pouco tempo não está ocorrendo mais.

Os turistas estão voltando e isto melhora muito a vida de quem trabalha nesta área.

Vivenciamos um momento difícil nos últimos anos. A situação era muito delicada com o vírus. Quando se morre um familiar por falta de acesso a um tratamento, ninguém quer saber se há bloqueio ou se não há. Querem culpar alguém. E o primeiro a ser culpado foi o governo.

Por aqui não estamos acostumados a presenciar pessoas morrendo por causas evitáveis. Todas as mortes por covid-19 nos abalaram muitíssimo. Eu compreendo as pessoas que se revoltaram e acusaram o governo de ingerência. Na minha opinião, estavam instigadas por interesses estranhos à Cuba. Interesses estrangeiros. O que não podemos é fechar os olhos para uma realidade tão cruel e injusta como esta que os Estados Unidos nos impõem.

O importante é que superamos este momento e seguimos organizados e fortes como deve ser."

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL