Quem liga para elas?

Com pouco investimento em pesquisas, doenças negligenciadas (como dengue e Chagas) avançam em países pobres

Luiza Vidal De VivaBem, em São Paulo

Laércio Vasconcelos Júnior, 49, nasceu e cresceu no Crato, no Ceará, cidade que fica próxima a uma reserva ambiental chamada Floresta Nacional do Araripe. Aos finais de semana, com os pais e três irmãos, ia até uma fazenda localizada a 100 km de distância do município.

O empresário conta que adorava esses momentos da infância no campo, perto da natureza. "Foi desse contato que, talvez, tenha me contaminado. Não sei se fui infectado por um barbeiro ou se comi algum alimento contaminado por ele", diz.

Quando completou 40 anos, em 2013, teve um infarto, e foi aí que descobriu que estava com Chagas, doença causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida principalmente pelo inseto barbeiro.

"Foi um impacto quando recebi o diagnóstico. Parecia que tudo tinha acabado. A partir dali, minha cabeça não pensava em outra coisa se não na minha 'sentença de morte'. Entrei em profunda tristeza", lembra.

O que Laércio descobriu, quando resolveu pesquisar, é que essa doença, ao lado de uma longa lista, faz parte do grupo das DTNs (Doenças Tropicais Negligenciadas). São aquelas que atingem populações de países ou continentes com pouca capacidade de investimento em pesquisas —para novos tratamentos e vacinas, por exemplo.

De acordo com dados de 2021 da OMS (Organização Mundial da Saúde), mais de 1,7 bilhão de pessoas no mundo sofrem com algum tipo de DTN atualmente —nos anos anteriores, esse número era 1,5 bilhão. Em sua maioria, são curáveis, tratáveis e passíveis de serem eliminadas. Mas, por impactarem países mais pobres, não há grande interesse dos centros de pesquisa e das indústrias farmacêuticas para investirem em inovações.

Com isso, elas ocupam o fim da lista de prioridades. São esquecidas, estigmatizadas e negligenciadas. Dependem da união de órgãos de saúde e ONGs (organizações não governamentais) para receber a atenção que merecem.

Doença de pobre? Não é bem assim...

Leishmaniose, hanseníase, esquistossomose, elefantíase... Conhece algum desses problemas? Provavelmente, você vai se lembrar do que falaram nas aulas de ciências ou biologia da escola: "são doenças 'assustadoras', que afetaram muita gente nos séculos passados". Mas, na verdade, elas ainda existem e causam mortes pelo mundo, principalmente na África, Américas do Sul e Central e Ásia.

A OMS tem uma lista com 20 doenças consideradas negligenciadas (veja abaixo), que é atualizada periodicamente. São problemas causados por agentes infecciosos, como bactérias, protozoários e fungos, com maior impacto em países localizados na faixa tropical do globo, em áreas onde o acesso à água potável e ao saneamento é escasso.

"Essas doenças são majoritariamente associadas com pobreza e locais de vulnerabilidade, mas podem atingir qualquer pessoa de qualquer classe social", explica Denize Ornelas, médica de família e comunidade, e diretora da APMFC (Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade).

E mais do que "doenças negligenciadas", os especialistas preferem citar as "populações negligenciadas", já que existem outras condições —que não são tropicais nem constam na lista da OMS— também consideradas negligenciadas, como tuberculose, malária e HIV.

No entanto, elas recebem maior investimento apenas porque começaram a atingir populações com maior poder aquisitivo, segundo Ornelas.

"Com isso, essas condições ganharam uma atenção mundial, assim como foi com outras ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), como a sífilis. Por atingirem outras populações, elas receberam maior valor na sua pesquisa, com medicamentos de larga escala, mais pesquisa, inovações e tecnologias", diz a médica.

'Doutor, isso é lepra?'

Algumas das doenças negligenciadas causam modificações no corpo, como a elefantíase, que deixa membros inchados, com um tamanho anormal, além da sarna e das micoses profundas, que podem provocar feridas na pele.

Outra que também é carregada de estigma é a hanseníase, que causa manchas vermelhas ou brancas na pele. Muita gente acredita que é transmissível pelo contato, mas na verdade é via gotículas presentes no ar.

Antigamente, a condição era chamada de "lepra", termo que não é mais utilizado justamente por carregar um estigma enorme, impactando diagnóstico e tratamento.

Quem já sofreu com o problema sabe bem como é. O professor universitário Alysson Diniz, 34, teve hanseníase quando era criança, aos 13 anos. Na época, morava em João Pessoa (PB), onde nasceu e passou boa parte da infância.

Ele teve manchas avermelhadas e em alto-relevo na lateral da perna esquerda. Quando foi diagnosticado, o médico explicou como funcionaria o tratamento e que duraria por mais de um ano. Mas Alysson tinha mais uma dúvida: "Doutor, isso é lepra?"

"Já conhecia da bíblia e o médico explicou que era a mesma doença, mas que o nome ficou estigmatizado, não era mais como ocorria no passado. Ele seguiu com esse tom lúdico, de cuidado, mas sugeriu que eu não conversasse com ninguém sobre o problema, por se tratar de uma doença com estigma", lembra.

Até por isso, o professor escondia as manchas na época e, se alguém perguntasse, dizia que era uma alergia, conforme orientação da mãe. Hoje, ele entende a conduta do médico, de protegê-lo de preconceitos. No entanto, teve um preço.

"Parecia que eu tinha algo 'muito grande', que não podia contar a ninguém. Mas hoje sou pesquisador, professor, cientista, e falo abertamente que tive hanseníase."

Os desafios das doenças negligenciadas

  • FALTA DE INFORMAÇÃO

    Muitas pessoas nem sequer sabem que essas doenças existem. Por isso é necessário investir em mais campanhas públicas de conscientização.

  • PROFISSIONAIS DA SAÚDE SEM CONHECIMENTO

    Há pouca familiaridade com as doenças tropicais negligenciadas, inclusive nos postos de saúde e hospitais. Isso dificulta o diagnóstico e, consequentemente, o controle.

  • BAIXO INVESTIMENTO EM PESQUISA

    Sem apoio para que mais estudos sejam feitos, não é possível avançar em novas tecnologias de detecção, diagnóstico e tratamentos.

  • AUSÊNCIA DE MOBILIZAÇÃO DA SOCIEDADE

    As doenças afetam, na maioria das vezes, pessoas de baixa renda. No entanto, qualquer um, seja de qual classe social for, está sujeito a adoecer. Pensar no coletivo é uma forma de cobrar mais ações das autoridades.

  • LOCALIZAR AS PESSOAS ADOECIDAS

    De acordo com os especialistas, muitas pessoas podem estar doentes sem saber, já que algumas doenças ficam anos sem apresentar nenhum sintoma. Portanto, o primeiro passo é encontrar esses pacientes e tratá-los.

  • ESTIGMA IMPACTANTE

    A maioria dessas doenças causa muito estigma. Os pacientes têm vergonha e, muitas vezes, desistem do tratamento ou deixam de procurar ajuda.

É preciso muito mais em termos de inovação, especialmente para desenvolver produtos mais fáceis de usar e/ou de armazenar, principalmente em serviços de saúde periféricos. Espera-se que as tecnologias revolucionárias que têm sido usadas para desenvolver novas formas de diagnosticar, além de vacinas e tratamentos para covid-19, contribuam para aumentar a inovação também para as doenças negligenciadas.

Thoko Elphick-Pooley, diretora da União de Combate às DTNs

Problema de saúde pública, tratamento pelo SUS

Todas essas doenças podem ser diagnosticadas na rede privada, mas é o SUS (Sistema Único de Saúde) que irá acolher os pacientes. Isso começa nos postinhos de saúde da rede pública, onde a população tem acesso aos medicamentos e consegue agendar exames e consultas. E não é por acaso.

"Como são doenças que atingem as classes mais baixas e exigem controle sanitário, os tratamentos são oferecidos pelo SUS", explica Karen Mirna Loro Morejón, infectologista no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP) e diretora da SPI (Sociedade Paulista de Infectologia).

A maioria das doenças negligenciadas também exige notificação compulsória, isto é, um aviso à vigilância epidemiológica. Até para entender se está ocorrendo algum surto em determinada região e, futuramente, pensar em campanhas de conscientização.

É exatamente por isso que essas enfermidades exigem acompanhamento contínuo para evitar que as pessoas deixem de seguir o tratamento e, com isso, ofereçam maior risco à população.

Aliás, essas doenças também podem impactar a convivência social e, consequentemente, a procura por ajuda, segundo Andréa Silvestre, pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz.

"Algumas condições causam deformidades até faciais, como a leishmaniose. Tem doenças relacionadas a um estigma social muito forte. É mais uma limitação para que essa pessoa possa buscar ajuda. Além disso, há prejuízos na capacidade laborativa, já que esse paciente não se sente confortável perto dos outros. Isso tudo alimenta esse grande ciclo de negligência."

Doenças podem deixar sequelas para a vida toda

Laércio, citado no começo do texto, descobriu a doença de Chagas em uma fase já avançada e, portanto, sem medicamento para tratá-lo. Já para quem descobre o quadro de forma aguda, existe o remédio benznidazol, o único com registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Por causa da demora no diagnóstico, os problemas de saúde do empresário foram além. Quatro anos após ter descoberto o problema, sentindo muita tontura, ele foi internado e os médicos precisaram implantar um aparelho chamado de CDI (cardiodesfibrilador implantável), para controlar os problemas cardíacos causados pela doença. O equipamento deve ser trocado, em média, a cada cinco a oito anos. O de Laércio deve ser substituído em 2026.

"Levo uma vida normal, com poucas restrições. Mas tomo muitos remédios para controlar os batimentos cardíacos e evitar as crises de arritmia. São cerca de oito tipos de medicamentos diferentes. Nenhum deles é para tratar a doença de Chagas, mas, sim, os distúrbios causados pelo protozoário", diz.

Já no caso do professor Alysson, ele contou com remédios gratuitos pelo SUS por mais de um ano, acompanhamento médico mensal, além de sessões de fisioterapia, para evitar as sequelas da hanseníase.

"A mancha já não é mais visível praticamente. Mas não tenho as terminações nervosas, não sinto nada na região, se alguém me furar com uma agulha, eu não sinto. Tenho um tremor muito residual nas mãos, só que não me atrapalha em nada na vida corriqueira", conta.

Conviver com o estigma do Chagas é difícil. Ainda tenho muito receio em falar sobre o meu problema, talvez seja coisa da minha cabeça, pois é uma doença 'invisível'. Muitas vezes, durante a pandemia, me peguei pensando na rapidez com que uma vacina e outros remédios foram sendo pesquisados e descobertos. Enquanto isso, temos uma doença com mais de 110 anos de descoberta com apenas um medicamento disponível aqui.

Laércio Vasconcelos Júnior, 49, empresário, diagnosticado com doença de Chagas

Remédios em desenvolvimento

A maioria das doenças negligenciadas possui tratamentos. No entanto, muitos deles são considerados ultrapassados, tóxicos e causam diversos efeitos colaterais —o que, consequentemente, prejudica a adesão.

Mas algumas DNTs contam apenas com auxílio de medicamentos para aliviar sintomas. Caso da dengue e chikungunya, provocadas pelo mosquito Aedes aegypti.

A professora Ana Carolina Reis, de Caruaru (PE), teve chikungunya e entende esse sentimento. Tudo ocorreu no auge do surto da doença no Brasil, em 2016. "Na época, dizíamos assim: se você não teve, você vai pegar."

Com fortes dores nas articulações e febre alta, Ana, hoje com 27 anos, foi ao posto de saúde para receber os remédios diretamente na veia. Foi só assim que ela sentiu alívio do desconforto.

Vacinas para dengue e chikungunya já se encontram em fases avançadas de pesquisa. Um levantamento da OMS, inclusive, mostra que, entre as doenças tropicais negligenciadas, a dengue é a que tem o maior número de pesquisas em desenvolvimento (117), seguida de leishmaniose (63), raiva (60), doença de Chagas (42) e chikungunya (33).

No entanto, dos mais de 56 mil produtos com pesquisas em andamento, apenas 0,5% (395) são para as DTNs. Enquanto 57% são destinados a tumores, por exemplo.

Na prática, tudo isso tem um preço. São mais pessoas doentes, sem acesso a tratamentos e, consequentemente, menor controle da doença em questão.

Ana Carolina se recuperou bem, mas até hoje tem sequelas. "Sinto um incômodo nas dobras do pé, principalmente em dias mais cansativos. E olha que sou jovem! Sei de pessoas mais velhas que sentem dores no corpo todo até hoje", diz.

Com a pandemia de covid-19, ficou muito claro que quando há interesse e vontade política, existe um enfrentamento muito mais rápido e eficaz de doenças. Veja a velocidade com que foram criadas não só uma, mas várias vacinas contra a covid. Enquanto isso, temos aí doenças centenárias que não têm nem uma vacina ou forma de prevenção adequada.

Vitória Ramos, gerente de Advocacy, Relações Institucionais e Assuntos Humanitários dos Médicos Sem Fronteiras

Impactos da pandemia

  • DESCONTROLE

    Um grande aumento da carga de DTNs nas populações, sobretudo em relação à mortalidade e à morbidade (pessoas convivendo com a doença).

  • DIAGNÓSTICOS TARDIOS

    Assim como ocorreu com outras doenças, muitas pessoas deixaram de ser diagnosticadas com DNTs. Com isso, já chegam aos hospitais com quadros avançados e mais graves.

  • DADOS DEFASADOS

    Redução da coleta, análise e utilização de dados epidemiológicos para fins de planejamento e campanhas públicas.

  • ATRASO NAS METAS DA OMS

    Adiamento no cumprimento das metas de saúde pública estabelecidas para DTNs, incluindo eliminação da transmissão e erradicação de algumas enfermidades, como a doença do verme da Guiné.

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  • DIFICULDADE DE ACOMPANHAMENTO

    Como consequência, muitas pessoas em tratamento deixaram de ir ao posto de saúde ou às consultas por medo de pegar covid-19.

Entidades buscam investimentos e lutam por direitos

Pensamos sempre em desenvolver medicamentos para as populações mais afetadas, mas existem aquelas enfermidades que não possuem um grande número de doentes. No entanto, não é só uma questão de quantidade. Se nós não fizermos algo para eles, quem vai fazer?

Sergio Sosa-Estani, diretor da DNDi (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas) da América Latina

São as pessoas afetadas pelas DTNs que são verdadeiramente negligenciadas e a maioria corre o risco de ter múltiplas doenças. E, para isso, são necessários esforços coordenados e integrações na área da saúde e de outros setores, como a educação.

Thoko Elphick-Pooley, diretora da União de Combate às DTNs

Uma das nossas batalhas é encontrar essas pessoas que vivem com as doenças negligenciadas e dar a atenção adequada a elas. Em sua maioria, são pessoas em vulnerabilidade, com pouco acesso à saúde. Precisamos de políticas públicas que pensem nelas para ofereceremos maior qualidade de vida.

Vitória Ramos, gerente de Advocacy, Relações Institucionais e Assuntos Humanitários do MSF (Médicos Sem Fronteiras)

Em sua essência, este roteiro visa colocar as pessoas em primeiro lugar. Envolve o trabalho em todos os setores na implementação de programas para todas as 20 enfermidades e na promoção da equidade e da propriedade do país (...) Para fazer isso, os programas devem ser sustentáveis, com resultados mensuráveis e apoiados por financiamento interno adequado.

Mwelecele Ntuli Malecela, diretor da OMS, em comunicado à imprensa sobre as novas metas de controle das DTNs

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