Acidente, doença, violência: como a mente supera ou não um trauma?

Com duas indicações ao Oscar 2024, o filme "A Sociedade da Neve" é de uma sensibilidade ímpar ao responder uma pergunta que sempre paira diante da tragédia dos Andes: como eles conseguiram sobreviver?

O longa-metragem apresenta um caminho que vai muito além da antropofagia: tem humanidade, companheirismo e uma crença num futuro aparentemente impossível.

Além disso, o livro homônimo de Pablo Vierci, que inspirou a produção, traz respostas mais latentes a partir do relato dos 16 sobreviventes. Muitos deles falam do poder da mente para aguentar 72 dias a -30ºC, sem roupas ou abrigo adequados, sem comida, e com fé de que sairiam dali.

Nessa capacidade de adaptação, a mente desempenhou um papel decisivo. A mente daquele que quer se salvar o salva, mas a daquele que se entrega e diz 'daqui não sairei, vou morrer', morre em uma semana. Daniel Fernández, engenheiro agrônomo e sobrevivente dos Andes, em trecho do livro "A Sociedade da Neve"

Mas como a mente suporta uma adversidade tão grande? E como é possível que, vivendo a mesma situação, uns fiquem equilibrados e depois consigam falar sobre a experiência sem ressalvas enquanto outros têm surtos, adoecem, se isolam e preferem esquecer?

Pode-se pensar que algumas pessoas nascem mais resilientes do que outras, mas não é bem por aí, avisa a psicóloga clínica e pesquisadora Ilana Pinsky.

A gente nasce com algumas características de personalidade que, talvez, podem ajudar a enfrentar situações de forma melhor. Mas, na verdade, tem a ver com a situação e o tipo de apoio. Ilana Pinsky, psicóloga e pesquisadora

Em suas pesquisas sobre resiliência e otimismo para escrever o livro "Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis" (Editora Contexto), ela encontrou o que outros especialistas falaram a VivaBem: o suporte social é fundamental para a superação.

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"Somos seres gregários, precisamos de suporte. Por outro lado, ser excluído, abandonado, passar por relação abusiva, são situações que trazem traumas, atrapalham o funcionamento saudável do cérebro e podem levar à morte em última instância", aponta a neuropsicóloga Gisele Calia.

Apesar de isolados em meio às montanhas geladas, os jovens tinham uns aos outros, se apoiavam e encorajavam mutuamente, mesmo debilitados.

Assim como o acidente, outras situações potencialmente traumáticas —doenças, crimes e violência física— geram algum tipo de sofrimento, mas há uma gama de fatores protetivos que contribuem para superar uma adversidade sem traumas.

  • Suporte social. Como já dito, estar cercado de boas relações com família, amigos ou um grupo de apoio é o principal fator de proteção, pois dá sensação de pertencimento, acolhimento e compreensão.
  • Boa construção familiar. Se desde a infância a pessoa se sentiu amada, segura e respeitada, ela tende a se sentir mais capaz na vida.
  • Exposição anterior a dificuldades. A experiência de lidar com desafios dá a sensação de que é possível superá-los. Isso não quer dizer, porém, que viver uma grande tragédia te prepara para outra ainda maior.
  • Ter objetivos de vida. Em meio ao desafio, pensar em atividades para se fazer depois, pessoas a encontrar ou sonhos a realizar é motivador. É ter o sentimento de que vai dar certo.
  • Otimismo realista. Não se trata de negar o sofrimento, mas de olhar a situação de uma maneira aberta e encontrar o que pode ser positivo ali.
  • Noção de controle. Em meio ao ocorrido inesperado, ser capaz de encontrar um ponto que se pode controlar.
  • Fé. Não apenas no sentido religioso, mas também de ter um propósito e acreditar nele. Tem mais a ver com espiritualidade.

No livro "A Sociedade da Neve", o relato do engenheiro agrônomo Adolfo Strauch exemplifica o impacto de ter objetivos. Ele relembra o momento em que ficou soterrado na neve após uma avalanche:

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Mas quando começo a morrer, uma força interior até então desconhecida se faz presente, insinuando que não era o fim, acompanhada de uma sequência de imagens da minha família, em que se destacava o rosto sereno da minha mãe.

Reencontrar a família, a namorada, os amigos, provar a comida preferida novamente eram sonhos a ser realizados que, de alguma forma, mobilizaram os jovens na cordilheira.

Já o médico Roberto Canessa descreve o primeiro dia da expedição final, 61 dias após o acidente. Depois de passar o dia subindo a montanha com dois companheiros, eles se veem sem saída quando a noite chega com vento gelado, à beira de despenhadeiros.

A morte era quase certa, até que encontram um abrigo no paredão de gelo, onde se protegem. Dali, ele vê uma cena encantadora e manifesta o otimismo realista:

Não pode ser que isso seja lindo, que eu esteja desfrutando dessa imagem, com as Três Marias e a lua tão próximas. (...) naquela noite me senti uma pessoa privilegiada por estar naquele lugar (...), capaz de ver o universo daquela perspectiva. Pensei que a lua era um espelho por onde eu podia enxergar a minha casa e senti que um dia iria poder vê-la novamente.

Quando o trauma se instala

Eventos graves como os citados até aqui são potencialmente traumáticos. O trauma é o que se desenvolve depois a partir de sintomas muito específicos.

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Viver uma situação limite de vida é o principal fator desencadeante do TEPT (transtorno de estresse pós-traumático).

"De maneira geral, é como se aquela situação não tivesse sido resolvida, do ponto de vista cerebral. Ela permanece presente mesmo sendo algo situado no passado", explica José Waldo Saraiva Câmara Filho, doutor em neuropsiquiatria e ciências do comportamento pela UFPE e professor de psiquiatria da Universidade Católica de Pernambuco.

Outros elementos de risco para o transtorno são:

  • Falta de suporte. Sem uma rede de apoio, alguém com quem contar, é mais desafiador transpor um problema.
  • Superproteção na vida. Se a pessoa, desde a infância, não foi exposta a pequenas dificuldades, sente-se incapaz quando se depara com alguma adversidade.
  • Dimensão e duração do acontecimento. A percepção é relativa e quanto mais intensa e duradoura for vivida e sentida, maior a chance de ficar marcado como trauma.
  • Percepção de ameaça à vida. Sentir no momento do ocorrido que se pode morrer, que está muito vulnerável ou totalmente impotente.
  • Reação negativa, como se dissociar do fato. Nos Andes, por exemplo, algumas pessoas tiveram alucinações e surtos logo após a queda do avião, acreditando que estavam em casa ou se perguntando como foram parar ali.
  • Problemas psiquiátricos pré-existentes.

Tanto os fatores protetivos quanto os de risco não são determinantes. Eles podem, inclusive, se misturar em pessoas que superaram ou não um grande desafio de vida.

Quando se instala, o TEPT pode ser identificado por alguns sinais e sintomas:

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  • Estar sempre muito alerta;
  • Lembrar com muita frequência do ocorrido;
  • Sentir que precisa estar sempre preparado para outro evento;
  • Ansiedade;
  • Inquietação;
  • Insônia e/ou pesadelos;
  • Se esquivar de situações que possam resgatar a lembrança, como evitar o local de um assalto ou ter novos relacionamentos.

"A região do cérebro que processa um trauma físico é o mesmo que processa algo psicológico, emocional", diz Calia. E segundo a neuropsicóloga, um trauma pode, inclusive, promover modificações cerebrais.

"São comprovadas em ressonância. Para lidar com aquela situação, o cérebro se reestrutura e tenta 'apagar' memórias que lembrem o trauma", explica. "Tem áreas ligadas ao hipocampo (da memória) e do córtex pré-frontal (da concentração) que são 'apagadas'."

Crescimento pós-traumático

Quando não adoecem, parte das pessoas com característica resiliente consegue transformar a vivência desagradável em ação positiva.

Mari Toson é palestrante sobre desenvolvimento emocional
Mari Toson é palestrante sobre desenvolvimento emocional Imagem: Renan Radici
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A publicitária Mari Toson, 42, tem usado sua experiência de vida para contribuir com o desenvolvimento emocional e espiritual de outras pessoas.

Além de dar palestras, escreveu o livro "Meu Amigo Câncer", cujo título, diz, representa seu olhar para a vida, a ideia de que é preciso abraçar os problemas para encará-los.

"O livro tem todas as histórias da minha vida como pano de fundo, mas leva a reflexões profundas sobre vida, perdoar, fragilidade da vida, dar valor a coisas certas e esperança no coração", comenta.

Mari Toson durante tratamento de câncer
Mari Toson durante tratamento de câncer Imagem: Arquivo pessoal

Aos 19 anos, Mari foi diagnosticada com um tipo de leucemia em estágio avançado. Na noite em que foi internada, família e amigos fizeram uma corrente de oração e, no dia seguinte, um novo exame não identificou células cancerígenas.

Ainda era preciso fazer quimioterapia e ela precisou tomar altas doses de corticoide, o que, mais tarde, levou a uma osteonecrose no quadril.

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Foi uma jornada de três anos de dor crônica, 24 horas por dia, em que os ossos foram apodrecendo, fui perdendo os movimentos das pernas. Mari Toson

Em 2018, fez cirurgia para substituir as duas articulações do quadril por próteses.

Quando tinha 33 anos, ela e o marido tentaram engravidar e descobriram que a quimioterapia havia comprometido a fertilidade dela. Eles testaram diferentes métodos até conseguirem uma gestação natural na sexta tentativa.

Com dois meses de gestação, um ultrassom feito por garantia antes de viajar ao exterior mostrou que o bebê estava sem vida. Feita a curetagem, eles tentaram novamente depois de um mês e engravidaram de Maria, hoje com 8 anos.

Quando partiram para o segundo filho, Mari sofreu um novo aborto. A tristeza não a paralisou e já ter vivido tantas questões de saúde, de certa forma, a fortaleceu.

Mais tarde, Benício veio ao mundo com saúde, mas a publicitária teve hemorragia pós-parto. Foram três dias intubada na UTI e ovários retirados.

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Mari conta sua trajetória com muita tranquilidade e afirma que sempre acreditou num propósito de vida, embora ainda não soubesse qual era. Obstinada, com apoio familiar, fé no divino e em si, ela entendeu mais tarde para quê veio.

Senti que meu chamado era ajudar as pessoas de alguma forma, entendi que deveria pegar minha história e compartilhar. Mari Toson

De fato, as pessoas sentem curiosidade ou desejo de aprender com a vivência do outro, principalmente quando o acontecimento parece impossível.

Pinsky diz que, de modo geral, o ser humano sempre vê uma situação de forma mais negativa e pensa que nunca suportaria a experiência trágica do outro. Mas no momento em que se depara com a adversidade, tem naturalmente, no fundo, uma força que não imagina.

"Muitas das reações que a pessoa tem durante o trauma são, de certa maneira, ações e reações favoráveis à sobrevivência", comenta o psiquiatra Câmara Filho. Ficar ansioso, focado no que está acontecendo e apreensivo com o futuro é o que pode mobilizar o ser humano, sendo um dos fatores que ajuda no crescimento pós-traumático.

Como cultivar resiliência e olhar positivo

Nada de positividade tóxica, ok? Assim como o cérebro se modifica devido a um trauma, ele tem a capacidade de se reprogramar para encontrar formas de passar por um desafio com mais parcimônia, sem negar qualquer sofrimento.

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A questão é não se desesperar e tentar olhar para as coisas que podem te ajudar a lidar com essa situação específica. Ilana Pinsky, psicóloga

Para isso, contamos com a plasticidade cerebral, ou seja, a capacidade de ser moldável. "O trauma é um caminho em que os neurônios fazem sinapses indicando perigo, mas precisa quebrar essa conexão e construir novas", diz Calia.

O TEPT, por exemplo, é primordialmente tratado com psicoterapia, na linha cognitiva-comportamental, em que se busca "ensinar" o cérebro que o fato trágico está no passado e não representa um perigo real no presente.

Construir novas sinapses é como criar novos trajetos no cérebro para resolver um problema ou pensar numa solução mais criativa. Num primeiro momento, é preciso se conscientizar da situação e intencionalmente buscar esse novo olhar.

Segundo Pinsky, vale pensar que, diante de um desafio, você provavelmente não é a primeira nem a última pessoa a viver isso. Então, algumas perguntas contribuem para desenvolver a visão mais otimista e realista:

  • O que pode ser feito agora, hoje, para solucionar?
  • Quais caminhos eu tenho a meu favor?
  • O que ou quem pode me ajudar nessa situação?
  • O que eu posso fazer para melhorar a minha vida e a de outras pessoas?
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Além disso, reflita:

  • Quando você tem dificuldade para alcançar um objetivo, consegue pensar em várias soluções diferentes ou não?
  • Quando as coisas estão difíceis, mesmo sendo muito complicadas, você consegue pensar que elas podem melhorar um dia ou não?

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