Dá para ter mais de um transtorno mental? Quais as combinações mais comuns?

É provável que você já tenha ouvido falar em comorbidade (presença de duas ou mais doenças ao mesmo tempo em alguém), correto? Pois esse termo não se aplica somente à saúde física, como também à saúde mental. Logo, ter dois ou mais transtornos juntos, ou comorbidade psiquiátrica, é possível, como explica Wimer Bottura, psiquiatra pelo IPq-FMUSP (Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP).

"Há vezes em que a comorbidade mental não apenas influencia como também pode estar combinada/sobreposta a algum problema que surge", afirma o médico. No caso do déficit de atenção, por exemplo, ele pode apresentar outras comorbidades relacionadas diretamente a seu diagnóstico, como a hiperatividade. Daí o chamado TDAH, ou transtorno do déficit de atenção e hiperatividade.

O TDAH afeta o funcionamento do cérebro e tem origem genética hereditária, embora fatores ambientais e sociais possam influenciar. "Esse transtorno aparece frequentemente associado a outro distúrbio de neurodesenvolvimento, o TEA (Transtorno do Espectro Autista), e não é fácil diferenciar os dois", explica Júlio Barbosa, médico pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e neurocirurgião, emendando que ambos têm sintomas que geram muita confusão, como dificuldade de concentração e organização, impulsividade e problemas de interação social.

Barbosa acrescenta que ainda podem estar associados com TDAH transtornos de humor, como ansiedade e depressivo maior, por compartilharem componentes genéticos e alterações nos neurotransmissores. Essas comorbidades afetam o funcionamento cognitivo, emocional e social das pessoas com TDAH, que por essa razão tendem a ter problemas de comportamento, relacionamento e autoestima muito mais intensos.

Outras combinações de transtornos

O leque de transtornos que podem afetar ao mesmo tempo alguém é grande e, a depender do grau de intensidade, repercute em aumento de gravidade, complexidade e duração dos sintomas, informa Luiz Scocca, psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da USP, acrescentando que em consultório é comum profissionais de saúde mental se fazerem a pergunta: "Será que para por aí? A regra é sempre ter mais uma coisa a descobrir".

Para além do TDAH, que ainda pode estar combinado com transtorno ansioso generalizado (TAG), opositor desafiador (TOD), estresse pós-traumático (TEPT), de aprendizado específico (leitura, escrita, matemática), obsessivo compulsivo (TOC), aponta Scocca, outras combinações incluem:

Ansiedade e depressão: essa "dobradinha" é a mais frequente. São quase 19 milhões de pessoas com as condições no Brasil, que lidera o ranking de depressão na América Latina, além de ter os maiores índices de ansiedade do planeta, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). As duas doenças podem se retroalimentar, gerando um ciclo de tristeza, irritabilidade, desesperança, isolamento, e ainda se somarem à esquizofrenia, ao TOC e a dependências químicas.

Transtornos alimentares e de personalidade: acabam repercutindo em distorções de imagem corporal, baixa autoestima, impulsividade, perfeccionismo, medo de rejeição e dificuldades de relacionamento. Entre mulheres jovens, anorexia, bulimia e compulsão alimentar podem estar associadas a transtornos como borderline, obsessivo compulsivo e de personalidade esquiva.

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Transtornos de conduta, psicopatia e narcisista: o primeiro, se não tratado cedo, pode evoluir para transtorno de personalidade antissocial e este, por sua vez, para a psicopatia. Quase sempre, um psicopata também é um narcisista, mas nem todo narcisista é um psicopata. No entanto, sabe-se que pessoas com transtorno narcisista podem apresentar transtorno depressivo, anorexia, uso abusivo de substâncias, ou transtornos histriônico, antissocial, borderline ou paranoide.

Se podem ocorrer juntos, como tratar?

Fazer a diferenciação entre tipos de transtorno, quando se tem mais de um, é complexo e envolve a avaliação de profissionais muito experientes, esclarece Bottura. "Requer entrevistas, aplicações de testes, exames, analisar como a família se comporta. Não é algo simples", ressalta o médico.

Como algumas condições podem ter apresentações semelhantes ou estão muito entranhadas, dificultando a diferenciação entre elas, é necessário avaliar se seus sintomas ocorrem de forma independente ou se são consequência um do outro. Além disso, o profissional terá que verificar se eles se enquadram nos critérios de referência para cada caso. "Seguimos um roteiro de avaliação, para excluir diagnósticos e evitar erros", observa o psiquiatra Luiz Scocca.

Transtornos do neurodesenvolvimento, como TDAH e TEA, para serem diferenciados, ainda podem exigir avaliação neuropsicológica e ressonâncias cerebrais para descobrir alterações na função executiva do cérebro (típica do TDAH), ou na percepção sensorial e na capacidade de compreender estados mentais de outras pessoas (como no TEA), complementa Barbosa.

Portanto, a diferenciação entre transtornos quando juntos é cuidadosa, o que permite de modo igual tratamentos adequados, mas muito desafiadores. A abordagem em geral exige acompanhamento regular de equipe multidisciplinar, pode durar meses ou anos e envolve a combinação de psicoterapia (individual, grupo, familiar) e medicações, ajustadas de acordo com evolução dos sintomas e resposta do paciente, que deve seguir à risca as orientações médicas.

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