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'Descobri que meu pai era um psicopata': como transtorno impacta família

Entenda as características do transtorno de personalidade antissocial - Getty Images
Entenda as características do transtorno de personalidade antissocial Imagem: Getty Images

Sarah Alves

Do VivaBem, em São Paulo

01/06/2022 04h00

Durante a infância, a psicanalista Virgínia Coser, 39, percebia comportamentos diferentes no pai. "Não sabia o que era, mas ouvia conversas, pessoas comentando com a minha mãe." Os cochichos se acumulavam às atitudes intimidadoras com ela. Aos 24 anos, Virgínia entendeu o que acontecia: seu pai tinha transtorno de personalidade antissocial, antigamente chamado de psicopatia.

"Vi meu pai tentando assediar crianças, colegas da minha infância. Tinha consciência, tanto que com 15 anos foi a minha primeira tentativa de sair de casa", lembra. A relação com a mãe, que descreve com traços narcisistas, também era complicada. "Ela me deixava sozinha na feira para me ver chorando, tinha um prazer sádico. Me trancava no banheiro, acredito que como forma de punição."

Virgínia deixou totalmente a dominância dos pais quando tinha 34 anos. O pai já tinha morrido e os problemas de convivência com a mãe se tornaram insustentáveis, impactando a relação com suas filhas.

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Pessoa com transtorno antissocial não entende que suas atitudes estão erradas
Imagem: iStock

O transtorno antissocial atinge entre 1 a 2% da população mundial (uma a cada 100 pessoas), e integra o mesmo grupo de doenças psiquiátricas de condições como borderline e narcisismo. Segundo especialistas, a figura caricata de pessoas com psicopatia, vilões e assassinos em série de filmes, por exemplo, não é um padrão. Os perfis podem ir desde quem consegue mascarar as atitudes e conviver em sociedade, geralmente exercendo intensa manipulação, até quadros mais graves.

"Não tem nada de psicótico em um antissocial, ele não tem delírios ou alucinações. São pessoas plenamente capazes de avaliar, sabem o que estão fazendo, lúcidas a respeito dos seus atos", descreve a psicóloga Samantha Dubugras Sá, professora da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). "Nem todos cometem crimes absurdos, a tendência é causar prejuízos a quem convive com eles."

Perfis e diagnóstico difícil

Os comportamentos são pautados pela ausência de limites e empatia nas relações com os outros. Há o pensamento de que a forma como a sociedade funciona está errada, e não os excessos que pode cometer —alguns deles, inclusive, passíveis de punições severas.

"Habitualmente, isso não causa incômodo ao próprio indivíduo. Ele entende aquilo como justificativa para conseguir o que quer e que o outro é incompetente para se defender", diz o psiquiatra Rogério Jesus, mestre pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e membro da APB (Associação Psiquiátrica da Bahia).

tristeza, solidão, sozinha - iStock - iStock
Diagnóstico acontece após os 18 anos
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O diagnóstico de pessoas antissociais é um obstáculo, já que não é comum reconhecerem que suas condutas estão erradas. Além disso, só se pode confirmar o transtorno após os 18 anos, pois é preciso existir padrão transgressivo frequente anterior à idade.

"É difícil avaliar até que ponto o comportamento de uma pessoa é considerado normal ou seria um viés de transtorno e um problema. Essa condição se espalha, permeia todas as áreas de atuação, seja trabalho, seja família. Onde a pessoa está, há também o transtorno", descreve o psiquiatra Fábio Gomes de Matos, psiquiatra do HUWC (Hospital Universitário Walter Cantídio), em Fortaleza (CE).

O especialista explica que o tratamento pode envolver psicoterapia e mudanças no estilo de vida. No entanto, perceber que a forma de agir não está correta é o diferencial para conseguir conviver melhor.

Manipulação familiar

Para Virgínia, a ausência de atenção dos pais a isolou de cuidados essenciais, incluindo de saúde. Aos 20, já mirrada pela rotina de abusos psicológicos, foi pela primeira vez ao psiquiatra e descobriu ter depressão com ideação suicida.

Ao longo dos anos, as descobertas se acumularam: enxaqueca, fibromialgia, bruxismo. "Também recebi diagnóstico de estresse pós-traumático, porque eu tinha flashbacks da minha infância, meu pai me arrastando, supostos abusos dele. Tudo mostra o quanto o estresse prolongado deixa sequelas." Ela ainda descobriu ter um grau leve do TEA (transtorno do espectro autista), há cinco anos.

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Manipulação cria sensação de estar sempre errado
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No transtorno antissocial, é comum que a manipulação molde algumas das relações familiares. As dinâmicas podem ser tóxicas e envolver qualquer pessoa do convívio, independentemente do grau de parentesco e/ou proximidade.

"O familiar fica muito manipulado e emocionalmente instável. De modo geral, desenvolve sintomas mobilizantes do seu humor e afeto, como tristeza, depressão, ansiedade. Percebe a pessoa com pouca empatia para seus problemas e emoções", diz o psiquiatra Rogério Jesus.

Ainda há espaço para a culpa, pelo familiar acreditar estar sempre errado, fruto da constante manipulação. Isso também gera grau de adoecimento, lembra Jesus, principalmente porque as pessoas de fora podem acreditar e reforçar esses papéis. "Geralmente é uma relação adoecida de sugar o outro para atender as suas vontades", detalha.

Comportamentos espelhados

Quando Virgínia se tornou mãe, foi natural que alguns comportamentos dos pais se repetissem. Afinal, essa foi a única maneira que ela aprendeu a "cuidar". Mas quando a mãe começou a difamá-la para as netas, foi a hora de romper laços definitivamente e buscar ajuda para recuperar o afeto com as meninas.

"Assim que identifiquei o que eu fazia de errado e, culturalmente, o que a sociedade ensina, busquei ajuda, me tratei, estudei sobre educação parental. Identifiquei padrões, porque os traços podem acometer filhos e filhas. O emocional delas mudou, notas na escola", lembra Virgínia.

É possível repetir traços de pessoas antissociais - iStock - iStock
É possível repetir traços de pessoas antissociais
Imagem: iStock

Em alguns casos, explica a psicóloga Samantha Dubugras Sá, espelhar atitudes de pessoas da convivência que tenham o transtorno é comum. "Se a criança cresce nesse contexto, há uma questão de como aprende e se identifica, tem todo o exemplo dos pais. E, muitas vezes, ela se desenvolve em um meio em que aquilo é a forma como se lida com as questões da vida."