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'Sugar high': comer muito açúcar pode ter o mesmo efeito que uso de drogas?

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Fausto Fagioli Fonseca

Colaboração para VivaBem

07/07/2021 04h00

A noção de que a ingestão de açúcar pode causar hiperatividade, um "sugar high" ("barato do açúcar", numa tradução livre), ainda perdura: afinal, quem nunca relacionou comportamentos impulsivos e inquietos de crianças a um alto consumo de doces, chocolates e refrigerantes? Na prática, porém, essa relação não é tão simples e dizer que o açúcar causa hiperatividade trata-se mais de um mito perpetuado por gerações do que uma verdade absoluta baseada em evidências científicas.

"Apesar de a relação 'consumo de açúcar' e 'hiperatividade' em crianças existir há mais de 40 anos no meio científico, hoje sabemos que não há evidências que comprovem essa relação. Pelo contrário: estudos muito bem conduzidos e controlados vêm mostrando que não há qualquer tipo de influência do consumo de açúcar por crianças sobre seu comportamento", explica Bruno Dias, especialista em nutrição clínica e esportiva e professor do Centro Universitário Uniruy, em Salvador, na Bahia.

A hiperatividade é classificada como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), apresentando sintomas como desatenção, inquietude e impulsividade. É comum na infância, mas também pode aparecer em adultos. Atualmente, é consenso entre a comunidade médica e científica que o TDAH tem como principais causas uma junção de fatores genéticos e ambientais.

"Nada prova que o 'sugar high', esse aumento do nível de açúcar no corpo, vai aumentar a atividade de uma criança ou torná-la agressiva e agitada. O que sabemos é que o açúcar é, sim, lesivo para a criança, fazendo com que ela aumente o nível de insulina e, para isso, ela tem que hiperexcitar o pâncreas, que produz a insulina —e isso não é bom para a criança", fala Nelson Douglas Ejzenbaum, médico pediatra e neonatologista, de São Paulo.

Mas de onde vem o mito?

Um artigo do New York Times que discute o "sugar high" busca entender a relação com base em estudos feitos ao longo do século passado. De acordo com o artigo, na literatura essa primeira associação surge em 1922, mas a noção generalizada de que há relação causal entre a ingestão de açúcar e comportamentos impulsivos e inquietos aparece em 1975, com o best-seller Why Your Child Is Hyperactive ("Por que sua criança é hiperativa"), do médico alergista pediátrico Ben Feingold.

"O filho loiro e magro adorava refrigerantes, doces e bolos —o que não é exatamente anormal para qualquer criança saudável. Ele também parecia enlouquecer depois de festas de aniversário e reuniões de família durante os feriados", escreve o médico sobre um de seus pacientes em um trecho do livro.

Vale lembrar que, na década de 1970, começaram a se popularizar os medicamentos estimulantes e anfetaminas que prometiam ajudar no tratamento de déficit de atenção e hiperatividade. Com a preocupação que surgiu em decorrência dos efeitos colaterais dos medicamentos, foi atraente a possibilidade de controlar os sintomas monitorando a ingestão de açúcar.

Na mesma época, os primeiros estudos relacionando o alto consumo de açúcar à hiperatividade começam a aparecer, fazendo uma relação causal entre os picos de insulina e a consequente liberação de adrenalina aos sintomas de hiperatividade. Os dados, porém, ainda eram inconclusivos e pouco consistentes.

"Os alimentos que têm uma quantidade alta de açúcar têm uma função cognitiva relacionada. Todos os alimentos com açúcar refinado causam um pico glicêmico e esse pico aumenta a energia de forma momentânea. Ou seja, a pessoa tem uma sensação de euforia, de energia, e logo isso tende a diminuir por conta da diminuição da absorção do açúcar", explica a nutricionista Gabriela Cilla, da Clínica NutriCilla, em São Paulo.

Aumentar o nível glicêmico, porém, não quer dizer que uma superexcitação vai aparecer, mas sim que há uma liberação de energia rápida que, se não for gasta, vai ser guardada no corpo. "O açúcar tem essa desvantagem, ou você gasta ou guarda, e para queimar esse açúcar é preciso de insulina —e o pâncreas tem que trabalhar muito mais para cumprir essa necessidade", complementa Ejzenbaum.

Portanto, ainda que haja esse aumento de energia, ele não pode ser relacionado à causa direta da hiperatividade. Um estudo realizado em 1994, publicado no New England Journal of Medicine, testou crianças de diversas idades cujos pais descreveram como sendo sensíveis ao açúcar, e tirou a prova.

As crianças foram divididas em dois grupos, um que recebeu uma dieta com alimentos açucarados e outro que recebeu uma dieta adoçada com aspartame e outros adoçantes artificiais. Elas tiveram medidas de desempenho cognitivo mensuradas e a conclusão foi que o açúcar não afetava o comportamento ou a função cognitiva das crianças.

Apesar de não causar hiperatividade, ele também faz mal e vicia

"Açúcar" é um sinônimo de carboidrato, mas na linguagem popular o termo é usado para designar um tipo específico de carboidrato: a sacarose (ou "açúcar de mesa"). Como todo carboidrato, a sacarose possui função energética, ou seja, é uma fonte de energia para as células desempenharem suas atividades normais.

"Ela (a sacarose) é muito facilmente digerida e absorvida no nosso intestino, o que faz com que essa energia seja disponibilizada de forma muito rápida, mas isso não tem qualquer efeito estimulante sobre o Sistema Nervoso Central", explica Bruno Dias.

O consumo excessivo de "açúcar de mesa" desencadeia uma série de processos metabólicos no corpo. No primeiro momento, há uma oferta de energia imediata, porém, quando metabolizado por completo, libera moléculas de corpos carbônicos, levando o corpo a apresentar sonolência e fraqueza.

"O excesso de açúcar que não é totalmente utilizado para fornecer energia ao corpo é transformado em gordura, favorecendo o surgimento da obesidade, colesterol alto e diabetes. O corpo tem um limite de uso da glicose como fonte de energia, sendo a glicose excedente transformada em gordura", explica a nutricionista Renata Sanches, diretora da clínica Nutricare, em Salvador, na Bahia.

Além disso, ao ingerir alimentos açucarados em excesso, o sistema de recompensa do cérebro, chamado de sistema dopaminérgico mesolímbico, é ativado. A dopamina é uma substância química liberada pelos neurônios e pode sinalizar que um evento foi positivo. "Quando o sistema de recompensa dispara, ele reforça comportamentos —tornando mais provável que realizemos essas ações novamente", fala Patrícia Savoi, médica nutróloga de Sorocaba, no interior de São Paulo.

Por isso o açúcar é considerado uma substância viciante, que pode causar dependência. "O açúcar no cérebro desempenha mecanismos parecidos com o responsável pelo vício de drogas, como, por exemplo, a cocaína, o ópio e a maconha, gerando um ciclo vicioso", enfatiza Sanches.

Portanto, ainda que não tenha relação direta com a causa da hiperatividade, ele deve, sim, ser controlado, sobretudo para crianças. A nutricionista Gabriela Cilla sugere: "Se a pessoa usa o açúcar refinado, pode tentar uma transição para os menos refinados, como o demerara ou de coco. Depois, pode tentar fazer a substituição natural, usando xilitol e estévia, por exemplo".