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Paulo Chaccur

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Como problemas no fígado afetam o funcionamento do sistema cardiovascular

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/07/2022 04h00

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Nosso corpo está todo conectado. Como uma máquina, precisa que tudo esteja em pleno funcionamento para nos manter saudáveis. Um defeito aqui, um distúrbio ali e logo o organismo desencadeia ajustes e compensações para suprir suas necessidades. Assim é também com o coração e o fígado: um problema em um dos órgãos afeta o outro.

A respeito do coração falamos constantemente neste espaço, mas e o fígado, o que você sabe sobre dele? Para começar, devemos entender sua localização e responsabilidade. O fígado está na parte superior direita do abdome, abaixo do diafragma. O que poucos têm conhecimento é que é dele o título de maior órgão interno do corpo humano.

E sua responsabilidade é proporcional ao seu tamanho. Está envolvido em mais de 500 funções vitais, incluindo o metabolismo, homeostase energética, síntese biliar, desintoxicação, entre outros. Porém, por muitos ainda é negligenciado e até esquecido.

Aí você pode estar se perguntando: mas como o coração e o fígado estão relacionados? Em resumo, eles formam uma equipe, atuam juntos para garantir a circulação saudável do sangue pelo nosso organismo.

Substâncias de destaque

Quando falamos do processo circulatório, precisamos mencionar dois pontos importantes que ligam esses órgãos, o sangue e a bílis —fluido produzido pelo fígado, também chamado de bile ou suco biliar. O coração é o responsável por bombear o sangue distribuído por todo o corpo.

Cabe então ao fígado filtrá-lo. Ele executa uma espécie de limpeza, separando aquilo que é bom para mantermos e o que não serve para nós e deve ser descartado. Pelo fígado passam cerca de um litro e meio de sangue por minuto.

Sangue esse que vem de duas fontes: da veia porta (75% do total) e da artéria hepática (25% do total). A veia porta recolhe sangue venoso rico em substrato do baço e de órgãos que participam da digestão, e o entrega ao fígado. A artéria hepática traz sangue rico em oxigênio do coração.

E por meio da bílis, o fígado exerce outra função fundamental: dissolver a gordura nos vasos sanguíneos. O fígado produz até duas xícaras de bílis por dia. Sem o fluido, nossas artérias se tornariam extremamente rígidas e bloqueadas, não permitindo a circulação sanguínea pelo corpo. Já dá então para imaginar que uma disfunção em qualquer parte desse processo pode desencadear problemas conhecidos?

Complicações causadas

Tratamento da obesidade, médico - iStock - iStock
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Quando entramos nas doenças relacionadas ao fígado, vale um esclarecimento. Chamamos de hepatite qualquer processo inflamatório do fígado, que pode ser originado por diferentes razões, entre as mais frequentes: infecções por alguns tipos de vírus (o B e C são aqueles com mais chances de hepatite crônica), bactérias, em resposta ao sistema imunológico, além do abuso do consumo de álcool ou outras substâncias, a exemplo de alguns medicamentos.

O que nem sempre é dito, no entanto, é que as doenças metabólicas, especialmente diabetes, hiperlipidemia (ou dislipidemia - ou seja, altos níveis de gordura na corrente sanguínea) e obesidade também entram nessa lista. E aqui falamos de fatores de risco igualmente relacionados, e de forma direta, ao sistema cardiovascular.

Para o fígado, as consequências dessas questões, caso não sejam tomados os cuidados necessários e tratamentos corretos, é a evolução para uma cirrose, isto é, uma inflamação crônica que destrói aos poucos as células do órgão.

Com o tempo, ele pode perder sua função, chegar a uma insuficiência grave e, posteriormente, o quadro evoluir para um câncer hepático e muitas vezes a necessidade de um transplante de fígado. Já para o coração veremos a seguir.

Como o fígado atinge o coração

Um fígado doente tem seu funcionamento prejudicado. Sem exercer a filtragem e a dissolução da gordura no sangue, causa sérios danos ao sistema cardiovascular. O acúmulo de gordura no órgão tem forte influência no processo de desenvolvimento da aterosclerose (acúmulo e formação de placas de gordura e o endurecimento das artérias), nos fatores inflamatórios relacionados ao sobrepeso e obesidade, assim como na alteração do metabolismo dos lipídeos, como colesterol e triglicérides, e no aumento da resistência à insulina (ponto associado ao aparecimento do diabetes tipo 2).

Um fígado cheio de gordura (acometido pela doença hepática gordurosa não alcoólica - DHGNA) pode assim exigir que o coração trabalhe mais para ejetar a mesma quantidade de sangue, o que leva ao espessamento de sua parede e a um aumento das necessidades de oxigênio, predispondo à insuficiência cardíaca, arritmias, problemas na função miocárdica (do músculo cardíaco) e o surgimento da doença arterial coronária —e, consequentemente, do infarto do miocárdio.

Estudos apontam que a doença cardíaca é uma das principais causas de morte em indivíduos em diferentes estágios de questões hepáticas. Um agravante é que as anormalidades cardiovasculares em pacientes com doenças hepáticas, especialmente em estágio inicial, são, em geral, silenciosas ou sutis e, portanto, na maioria das vezes ignoradas até que se manifestem.

Um artigo publicado no Journal of The American College of Cardiology, do pesquisador Eric Stahl (artigo intitulado "Nonalcoholic Fatty Liver Disease and the Heart" (Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica e o Coração), analisa essas relações entre a DHGNA e os eventos cardiovasculares.

Segundo aponta o texto, no caso do fígado, uma DHGNA pode evoluir para uma fibrose e mais tardiamente para cirrose, com chances do desenvolvimento de hepatocarcinoma (um tipo de câncer primário do fígado).

O coração debilitado também afeta o fígado

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Vale reforçar aqui que os problemas são uma via de mão dupla. Se o coração não bombeia sangue adequadamente, prejudica o funcionamento do fígado. A insuficiência cardíaca provoca danos ao órgão.

Como vimos, o fígado recebe até 25% do débito cardíaco e, portanto, é altamente sensível à redução do fluxo sanguíneo. Ou seja, se o coração estiver com problemas, o fluxo de sangue que circula pelo fígado será alterado, provocando disfunções no processo de filtragem e até o acúmulo do líquido, com consequente aumento do tamanho do órgão. Surgem então questões ligadas à insuficiência hepática.

Prevenção dupla

Fica assim mais fácil compreender que quem deseja um coração cheio de saúde precisa também dar atenção ao fígado —e vice-versa. A prevenção de questões cardíacas e hepáticas, como vimos, se sobrepõem.

É fundamental para ambos a manutenção de um estilo de vida saudável, que inclui a atenção ao estresse, controle de peso, dieta adequada, atividades físicas regulares, evitar o cigarro e o consumo de álcool, monitoramento da pressão, colesterol e diabetes, entre outros distúrbios que possam contribuir para o acúmulo de placas de gordura nas artérias.

Identificar essas interações entre coração e fígado pode assegurar ainda tratamentos mais eficazes para proporcionar uma melhora no prognóstico de pacientes tanto com doenças cardíacas como hepáticas.