Lúcia Helena

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Reportagem

DNA de vírus no nosso genoma está envolvido com transtornos psiquiátricos

Você é um ser humano ou é um vírus? Não enlouqueci, mas a provocação é só para lhe contar que cerca de 8% do seu — do meu, do nosso — DNA são virais. Isso mesmo, produto de infecções antigas, mas antigas pra valer, que aconteceram centenas de milhares de anos atrás. Para quem gosta daquela comparação de que o genoma é o "livro da vida", digamos que uns bons trechos têm a coautoria do que os cientistas chamam de HERVs, sigla do inglês para retrovírus endógenos humanos.

Ora, os retrovírus — os de ontem e os de hoje, isso não muda — têm sabidamente essa habilidade de se infiltrarem no nosso genoma. Colam e fazem sua cópia, que, então, por lá fica. Agora, uma pesquisa conduzida no Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência da King's College London, na Inglaterra, publicada final de maio na Nature Communications, mostra que essas sequências que herdamos de vírus antigos podem contribuir para a predisposição que algumas pessoas apresentam para transtornos psiquiátricos, como a depressão, a esquizofrenia e o transtorno bipolar.

À frente do estudo está Rodrigo Rafagnin Duarte, um paranaense de Foz do Iguaçu. Formado em Ciências Biológicas no interior de seu estado, ele saiu do país há dez anos para fazer um doutorado na King's College e acabou ficando. Foi já nessa fase londrina — depois de ter investigado a biologia de fungos e bactérias no Brasil — que mergulhou no que declara ser sua paixão, a genética psiquiátrica.

A tendência a adoecer

Quando Duarte começou a se dedicar a essa área, surgiam os primeiríssimos estudos de associação genômica ampla. Explico: são trabalhos em que os cientistas olham para as alterações nos genes, ou variantes, de centenas de milhares de pessoas, cruzando essa informação com suas condições de saúde.

Foi desse jeito que nasceu boa parte do conhecimento atual sobre quais genes teriam a ver com a suscetibilidade a essa ou àquela doença. E as psiquiátricas, claro, não ficaram de fora dessas grandes investigações, nas quais os britânicos, por sinal, são reconhecidos como craques.

"Só que esses estudos achavam associações entre doenças e variantes muito comuns na população, mapeadas fora dos nossos genes", diz Duarte. "E eu me perguntava: não seria interessante olhar melhor para esse "resto" do nosso DNA? Isso porque a maioria variantes — em torno de 90% das alterações envolvidas em doenças complexas, como as psiquiátricas — está nessas regiões, que chamamos de não codificantes."

Um pouco de "genetiquês"

Nessa hora, a gente precisa fazer uma paradinha estratégica para lembrar o jargão da genética. Apenas uma pequena parte do genoma é formada pelos famosos genes, sequências de DNA que podem ser transcritas, isto é, copiadas em moléculas RNA, para, logo depois, serem traduzidas nas mais diversas proteínas que constituem o corpo humano. Os genes carregam a receita das nossas características físicas, por exemplo. E, quando entram em ação — no caso, codificando proteínas —, os cientistas dizem que eles estão se expressando.

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Mas no nosso genoma existe outra parte, bem mais extensa, que não codifica proteína alguma — é dela que Rodrigo Duarte estava falando. E, nessa região não codificante, também há DNA de vírus antigos de montão.

"Por que será que ainda temos o DNA de um vírus que nos infectou no passado remoto?", diz o cientista brasileiro, antecipando a nossa dúvida. "Porque ele provavelmente invadiu uma célula reprodutiva, isto é, um espermatozoide ou um óvulo. Com isso, o seu material genético foi passado adiante para a prole, virando parte da nossa própria linhagem", explica.

Lixo? Que nada!

Rodrigo Duarte conta que, até há pouco tempo, acreditava-se que os tais HERVs ou retrovírus endógenos humanos pudessem ser deixados de lado nos estudos, inclusive os da genética psiquiátrica, porque não fariam coisa alguma. Como tudo o que estava na região não codificante, eles já chegaram ser rotulados com o apelido pejorativo de DNA lixo. Injusto.

Hoje se sabe que essas sequências de DNA viral também se expressam e, quando entram em ação, feito um interruptor ligado, regulam a função dos genes codificantes — os quais, cá entre nós, levavam a fama de fazer tudo ou quase tudo sozinhos.

"A questão é que essas outras sequências de DNA eram bem difíceis de estudar porque são muito repetitivas. Com isso, confundiam o pessoal da bioinformática, que quebrava a cabeça para entender a localização daquelas que estavam se expressando", conta Duarte. "Bem recentemente é que foram desenvolvidas ferramentas, como a nossa, permitindo enxergar quando isso acontece e que funções poderiam ter."

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O estudo que ele e seus colegas acabam de publicar, diga-se, é o primeiro a mostrar que as sequências oriundas de vírus antigos, no final das contas, provavelmente influenciam as trocas de sinais entre as células do cérebro humano, alterando sua comunicação e produzindo transtornos.

O que foi feito

Para chegarem a essa conclusão, os pesquisadores se debruçaram sobre os dados a respeito dos transtornos psiquiátricos mais comuns, disponíveis naqueles estudos de associação genômica ampla. "Ao mesmo tempo, analisamos a expressão dos HERVs na autópsia de 800 cérebros, algo que, vale reforçar, só se tornou possível muito recentemente", explica Rodrigo Duarte.

Isso os ajudou a ver que muitas das variantes associadas às doenças psiquiátricas estavam afetando as sequências de DNA viral que carregamos.

Onde se quer chegar?

"Os efeitos de uma pesquisa como essa nunca aparecem a curto prazo, nem tenho a pretensão de, com o meu trabalho, mudar a história da saúde mental. A ideia é fornecer uma peça nova no quebra-cabeças dos transtornos psiquiátricos", afirma, com simpatia, Rodrigo Duarte. "Digo quebra-cabeças até porque esses transtornos são muito heterogêneos", nota.

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Ele pega como exemplo a esquizofrenia. Existem pacientes com alucinações auditivas e pacientes com delírios, para citar dois sintomas. Os casos não são todos iguais. "E há, pelo menos, 300 genes que já foram associados a esse transtorno. Talvez, elucidando a relação deles com as sequências de DNA viral, a gente possa descobrir que características genéticas estão mais ligadas a um sintoma específico ou a outro e, por esse caminho, até definir subtipos do problema", pensa o geneticista.

Ou seja, enxergando um detalhe — se é que podemos chamar de meros detalhes as sequências de DNA viral —, a ciência poderá decifrar onde estão as diferenças entre indivíduos que aparentemente compartilham um mesmo transtorno psiquiátrico. Para, quem sabe, desenvolver medicamentos que, mirando subtipos, sejam mais eficazes que os remédios atuais, os quais infelizmente não funcionam para todos.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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