Lúcia Helena

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Reportagem

Ciência prova: solidão envelhece e aumenta o risco de morte

Se é impossível ser feliz sozinho, não sei. O que sei, ou melhor, o que a ciência agora sabe é que viver sem gente querida por perto, sem trocar ideias com outras pessoas no dia a dia, nem procurar os amigos com frequência leva o organismo a envelhecer a passos largos — e, com isso, a ficar doente.

É o que mostra um estudo fascinante envolvendo inteligência artificial, realizado por pesquisadores da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, publicado recentemente no Journal of the American College of Cardiology: Advances.

Óbvio que ninguém está falando de rugas, nem de qualquer traço na aparência, mas do que a passagem dos anos faz com o funcionamento do corpo humano. Ora, nada de errado se ela deixa suas marcas no tempo certo. Vamos encarar: faz parte. Porém, quando a idade biológica é bem maior que a cronológica — aquela que consta nos nossos documentos e que comemoramos no aniversário —, podemos esperar adoecimento e risco aumentado de morte por todas as causas.

Aliás, além de avaliar a diferença entre a idade biológica e a cronológica de mais de 280 mil pessoas que, em algum momento entre junho de 2019 e março de 2022, passaram por uma das unidades da clínica americana para receber atendimento ambulatorial, os cientistas checaram se havia uma associação entre viver mais isolado e o risco de morrer. Descobriram que a taxa de mortalidade era até 47% maior entre os solitários.

Descobriram mais: a solidão é um fator de risco independente. Isso significa que ela acrescenta anos à nossa idade biológica e faz igualmente mal à saúde tanto de quem já tinha algum problema pré-existente, como um diabetes ou uma hipertensão, quanto de quem não apresentava nada disso.

Pode ser mais perigosa que outros fatores de risco

"Na faixa etária acima dos 65 anos, a solidão parece ser um fator de adoecimento até mais importante que o colesterol alto, a pressão arterial elevada e o tabagismo", afirma o cardiologista Amir Lerman, que me concedeu entrevista. Diretor do Centro de Pesquisa Cardiovascular da Mayo Clinic, ele é autor de mais de 630 estudos, incluindo este sobre o impacto do isolamento social.

"Está claro que temos um problema e, creio, o primeiro passo é o seu reconhecimento", ele me diz. "Nosso estudo ajuda ao servir de alerta, inclusive aos médicos. Afinal, perguntamos ao paciente se ele fuma, como anda sua pressão ou sua glicemia, por exemplo. Mas nunca abordamos o isolamento social. Essa questão é ignorada na consulta. Ora, o que ignoramos não detectamos. E o que não detectamos simplesmente não tratamos."

O que é novo

Na Cardiologia, não é de hoje que se nota que a incidência de infarto e AVC (acidente vascular cerebral) aumenta entre aqueles que não estão sempre, ou quase sempre, convivendo com outras pessoas e mantendo laços sociais. "Alguns países já se preocupam com isso. O Reino Unido, por exemplo, criou um Ministério da Solidão", lembra o doutor Lerman.

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De fato, o isolamento social é considerado um dos determinantes sociais da saúde — como o acesso a serviços médicos e a uma alimentação adequada, as condições de uma região para a prática de atividade física, o estresse e outros.

Só que, até então, os trabalhos que mergulharam fundo na ameaça da solidão à saúde focavam justamente no coração e, em geral, na população idosa.

Dessa vez foi diferente: ao optarem por olhar para a idade biológica, indiretamente os pesquisadores tiveram uma noção do risco de o indivíduo ter qualquer doença, não só cardiovascular, e até mesmo de morrer por causa dela. Sem contar que o trabalho incluiu pessoas de diversas faixas etárias, a partir dos 18 anos. E adianto: viver sem contato com familiares ou amigos é capaz "envelhecer" biologicamente até os mais jovens.

"Eu arriscaria dizer que o impacto do isolamento social é potencialmente maior nos homens. Mas, do ponto de vista científico, a diferença entre gêneros também não foi significante", relata o doutor Lerman. Homens ou mulheres, todos sofrem se vivem sem proximidade uns com os outros.

Como foi o estudo

Logo de cara, para entender como andavam as interações sociais dos participantes, os pesquisadores aplicaram um questionário. As pessoas respondiam se pertenciam a algum clube ou organização social; com qual frequência participavam de encontros, festas e outras atividades sociais por ano, bem como a frequência anual com que iam à missa ou a outros cultos religiosos; quantas vezes por semana falavam com familiares e amigos por telefone e quantas vezes se reuniam pessoalmente com eles.

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As respostas eram pontuadas e o resultado ia de zero — isolamento social — a 4, que seria o escore de alguém com muitas interações. Depois, todos foram submetidos a um eletrocardiograma. Não a qualquer eletrocardiograma e, sim, a um IA-ECG. Com um modelo desenvolvido na própria Mayo Clinic, graças à inteligência artificial, ele conseguia determinar a idade biológica. Aí era fácil: bastava calcular a diferença entre esse resultado e a idade cronológica.

A relação ficou nítida: aquelas pessoas que tinham uma pontuação mais alta no teste, indicando uma melhor vida social, apresentaram uma diferença entre as idades biológica e cronológica menor. Já quem mal convivia com pessoas próximas no cotidiano podia ter uma diferença de meses até quase nove anos a mais na idade biológica.

"Os indivíduos foram acompanhados por dois anos", conta o doutor Lerman. "Nesse período, 5% deles faleceram. A maioria das mortes foi de quem tinha uma pontuação baixa no questionário sobre conexões sociais."

Os sinais do coração

Pergunto ao médico se o IA-ECG, no fundo, não veria apenas a idade biológica do coração e não a da cabeça aos pés. "O fato de fazermos um eletrocardiograma não significa que estamos olhando apenas para o aspecto cardiovascular", me responde. "Estamos obtendo, vamos dizer assim, um sinal do organismo. E, no caso, o modelo de inteligência artificial — que já tinha provado ser capaz de acusar a idade biológica em um estudo anterior — foi alimentado com centenas de milhares de dados sobre o estado de saúde de centenas de milhares de pacientes para, então, associá-los à fisiologia cardíaca."

O médico reconhece que a idade biológica do organismo como um todo pode avançar paralelamente à do coração: "Indivíduos doentes, com uma insuficiência cardíaca grave, costumam ser muito 'velhos" biologicamente. No entanto, quando são submetidos a um transplante, sua idade biológica diminuiu."

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Aliás, essa é uma questão que vem instigando o doutor Lerman e seus colegas: será que, assim como no fenômeno do transplante cardíaco, se alguém que vivia isolado socialmente passar a se relacionar com pessoas no dia a dia, a mudança de comportamento "rejuvenesceria" sua idade biológica, fazendo cair o risco de doença e morte?

As várias saídas da solidão

Se ter conexões sociais sociais é remédio, não sejamos ingênuos: sua fórmula, então, varia de indivíduo para indivíduo para ser eficaz. A própria cultura de uma sociedade é capaz de fazer diferença.

"No Japão, onde as pessoas são mais abertas às soluções tecnológicas, talvez robôs domésticos possam ter algum impacto positivo", concorda o doutor Lerman. "Já nos Estados Unidos, onde os filhos saem de casa quando entram na faculdade e vêem os pais duas vezes ao ano, contatos por telefone ou por videoconferência seriam ótimos. Mas talvez, em países como o Brasil, onde as famílias se reúnem mais, a presença de pessoas literalmente ao lado é que faria diferença."

Outra boa pergunta

Um jeito de explicar o impacto da solidão na saúde é que, por causa dela, as pessoas sairiam menos de casa, por exemplo. Logo, caminhariam menos. Também poderiam deixar de se alimentar direito sem companhia à mesa. Não teriam ninguém para cobrar aquela ida ao médico ou ir junto em consultas. E por aí afora.

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Questiono: seria por razões assim que a idade biológica aumentaria na solidão ou o motivo estaria guardado no próprio organismo? "Provavelmente, as duas coisas", pensa o doutor Lerman. "É verdade que, vivendo socialmente mais isoladas, as pessoas tendem a tomar menos cuidado consigo. Mas também é plausível cogitar que, desde os primórdios, o seres humanos precisaram do contato uns com os outros para sobreviverem."

Nessa segunda linha de raciocínio, o organismo humano teria evoluído com essa necessidade. Daí que a gente não pode descartar uma explicação na sua biologia. "Talvez ela seja a liberação diferente de substâncias, como endorfinas e dopamina, quando nos sentimos acompanhados. Ou, ainda, ter uma boa vida social alteraria a ativação de processos inflamatórios ou do sistema nervoso simpático, que faz o corpo reagir a situações de estresse. ", especula o cardiologista. Esse mistério é o que, agora, precisamos desvendar.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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