Lúcia Helena

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Reportagem

Já ouviu falar em 'hormonologia' e seus tratamentos? Se ouvir, saia ligeiro

Fadiga, estresse, distúrbios sexuais, depressão, queda de performance em treinos, ganho de peso, envelhecimento precoce — estas são algumas das questões que a "hormonologia" sugere ser capaz tratar. Como? Repondo um hormônio aqui e outro ali, com especial gosto por implantes de testosterona. E, com a lábia de quem promete inovação, atrai não só pacientes desavisados como jovens médicos, ao oferecer até pós-graduação nesse território onde o marketing é rei.

E quem faz pós em "hormonologia" seria o quê? Um "hormonologista", suponho. E um "hormonologista" seria o quê? Um estudioso, é o que agora eles dizem. Um curioso, talvez. Alguém querendo lhe vender implantes hormonais? Provavelmente. Ou quase com toda a certeza.

Apesar do jeito como o nome soa, um "hormonologista" pode ser tudo isso, menos um especialista em hormônios ao pé da letra, como a AMB (Associação Médica Brasileira) fez questão de alertar em uma nota de esclarecimento publicada na última segunda-feira, dia 25.

"Não existe a especialidade ou a área de atuação denominada 'hormonologia'", garante o documento. E segue explicando que a suposta especialidade vem sendo "anunciada nas redes sociais, nos consultórios médicos, em cursos e congressos, com o objetivo de tentar legitimar práticas inadequadas não baseadas em evidências científicas."

Tais práticas já colocariam a saúde em risco. E o agravante é serem oferecidas por quem não necessariamente se preparou pra valer para mexer com os seus hormônios. Aliás, se virou "hormonologista" no lugar de endocrinologista e metabologista, isso diz muito. O suficiente para você escapar.

O que, de fato, significa ir a um especialista?

Ninguém, aqui, está criando tempestade em copo d'água por causa de uma palavrinha. Apesar de "especialista" estar a boca do povo, poucos entendem o que realmente significa.

"As especialidades médicas existem por força de lei", começa lembrando o ginecologista César Eduardo Fernandes, presidente da AMB. "Não posso acordar de manhã e inventar que sou especialista nisso ou naquilo." Antes de ser uma questão de direito, é uma questão de formação.

Na Medicina existem 55 especialidades — nenhuma, vou repetir, é a tal "hormonologia". Para ser de uma delas, o médico tem três caminhos. "Um deles é fazer uma residência reconhecida pelo Ministério da Educação", explica o professor César Fernandes. Pegando como exemplo o endocrinologista, depois de seis anos na faculdade de Medicina, ele passa outros dois em uma residência de Clínica Médica ou de Pediatria, se pretende atender crianças. Em cada um deles, treina o atendimento de pacientes por 2.880 horas em um hospital ou serviço de saúde.

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Só depois dessas 5.760 horas é que pode cursar mais dois anos de residência em Endocrinologia e Metabologia, aprendendo e cuidando exclusivamente de pessoas com problemas metabólicos causados por alterações ou até mesmo deficiências de hormônios. Se fez as contas, só com mais 11.520 horas de treino e estudo — e isso depois de já ter o diploma da faculdade nas mãos — é que ele pode se dizer um endocrinologista. "Logo, não é algo que se consegue em cursos rápidos de 'hormonologia', de semanas ou poucos meses", diz o presidente da AMB.

Outro caminho é o médico fazer um curso de especialização com a mesma carga horária e treino. Finalmente, ele pode comprovar que atuou por esse mesmo tanto de tempo em um serviço de determinada especialidade. São alternativas necessária: faltam vagas de residência no país. Segundo a Demografia Médica Brasileira, que a AMB realizou junto com a USP (Universidade de São Paulo) no ano passado, metade dos médicos do país não conseguiu uma delas. "E, como atualmente são 40 mil egressos de faculdades de Medicina por ano, isso deve piorar", prevê César Fernandes.

Por fim, depois das duas residências, ainda é possível prestar a prova de título, teórica e prática, pela SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), mostrando que tem todas as competências de um legítimo especialista, capacitado para cuidar dos nossos hormônios.

"O perigo é alguém com problemas hormonais graves, como um diabetes dependente de insulina, se confundir com o nome que estão usando nas redes sociais e procurar um falso especialista, ainda mais se já tiver uma doença cardiovascular", aponta César Fernandes. Mas, mesmo pessoas saudáveis podem arriscar a sua saúde se não evitarem a cilada.

A apologia do corpo perfeito

Para o professor Clayton Macedo, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é isso o que está por trás da busca por tratamentos hormonais com fins estéticos. Beleza, a dos famigerados "chips", é o que mais se promete por aí.

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Endocrinologista, durante seu período de formação, Macedo foi atuar em uma colônia de férias para jovens com diabetes e notou o quanto o exercício físico melhorava o controle glicêmico. Foi o que lhe inspirou a mergulhar, também, na Medicina do Esporte. Hoje, coordena o Departamento de Atividade Física da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica) e o serviço de Endocrinologia do Exercício da universidade, que se tornou uma referência.

"Por causa disso, começamos a receber pacientes com complicações sérias por causa de esteroides, hormônios similares à testosterona, usados em busca de forma física", diz ele. Se antes eram relatos isolados, hoje são dois, três, quatro pacientes por dia. "Há casos de quem infartou ou teve uma embolia pulmonar", exemplifica o endocrinologista. "A consequência costuma ser a longo prazo. A pessoa usa hormônios esteroides aos 20 ou aos 30 anos e infarta na faixa dos 40, o que ainda é uma idade precoce para sofrer do coração e, quem sabe, morrer."

Neste mês, em um dos mais respeitados periódicos científicos, o JAMA, saiu um estudo com 1.189 homens com idade média de 27 anos que usaram hormônios similares à testosterona. Eles foram acompanhados por onze anos. A conclusão? O risco de mortalidade era 2,8 vezes maior entre os usuários desses anabolizantes.

Testosterona além da conta nos homens

Segundo o endocrinologista mineiro Paulo Augusto Carvalho Miranda, presidente da SBEM, o uso de testosterona em doses acima da fisiológica — " o que infelizmente vem se prescrevendo ", nota — até pode dar uma sensação de energia e boa disposição. O outro lado da moeda é um possível aumento da agressividade.

"Além disso, há hipertrofia do coração, elevação do colesterol e aumento da resistência à insulina, sem contar alterações hepáticas", elenca. "E o pior é que, na retirada desse hormônio em dose supra-fisiológica, como dizemos, a pessoa pode apresentar sintomas de abstinência. Passa a ter depressão, sentir extremo cansaço. Isso leva a ciclos de reutilização."

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Sem contar a eventual supressão da produção de testosterona pelos testículos, que ficam atrofiados quando o uso de esteroides foi prolongado. É como se o organismo terceirizasse essa função, já que o hormônio estava sendo entregue fartamente de outra maneira. "Essa supressão pode demorar mais de dois anos para ser revertida ou nem sequer ter volta", informa Paulo Miranda.

Mulher dosar testosterona?!

"Também vem se inventando uma condição clínica que não existe: a da mulher com testosterona baixa", acrescenta o presidente da SBEM. "Isso indica um desconhecimento básico: os níveis desse hormônio no organismo feminino vão de 0 até 60 nanogramas por decilitro." Ou seja, não ter nada ou quase nada de testosterona seria normal.

Por isso mesmo, qualquer implante fazendo as vezes de testosterona — prescrição queridinha do hormonologistas — costuma entregar a substância em dose = exagerada. Daí, além do pacote de consequências que aparecem nos homens — aquele combo que prejudica o coração —, a mulher ganha de bônus mudança no tom da voz, aumento do clitóris, pelos em locais indesejados, pele oleosa, queda de cabelos...

E o que acontece com a libido?, pergunto, lembrando de mais uma promessa feita por aí. "A testosterona até foi testada em mulheres na menopausa que já faziam reposição hormonal com estrógeno e que tinham o chamado transtorno do desejo sexual hipoativo", conta o doutor Paulo Miranda. "Mas, nem aí, se dosou a testosterona das participantes, porque não faz sentido. A indicação foi pelo diagnóstico feito no consultório."

Se quer saber, o desejo das participantes melhorou, mas num período de dois anos. "Não sabemos o que acontece a longo prazo, inclusive em termos de segurança", diz o endocrinologista. Valendo reforçar que as encrencas demoram mais de década para dar as caras.

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Não é a primeira, não será a última

Para Paulo Miranda, falsas especialidades prometendo tratar condições de saúde das mais variadas, muitas vezes usando argumentos e expressões emprestadas da endocrinologia e da metabologia, não são algo novo. Vêm de longa data.

"Surgiram de maneira sistemática nas últimas duas décadas", observa. "Já tivemos a suposta medicina ortomolecular com a ideia de repor nutrientes para reestabelecer um equilíbrio. Depois veio a medicina anti-ageing. Agora, temos essa nova nomenclatura, que logo será substituída. Em comum, passam a ideia de que seus praticantes dominam um conhecimento que estava de alguma forma escondido."

Contradição, porque eles sabem que, hoje, as redes sociais dão palco para tudo. Até para promessas lucrativas e sem cabimento.

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