Lúcia Helena

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Reportagem

Não é de gripe, nem de covid: qual vírus vem ameaçando o pulmão de adultos?

Um vírus novo? Nada disso, novo ele não é. Foi isolado ainda em 1956, na coriza de chimpanzés que não paravam de tossir ou de espirrar. E ganhou sua merecida má fama por estar por trás de até 75% das bronquiolites — a inflamação dos bronquíolos — e de cerca de 40% das pneumonias em crianças muito pequenas, abaixo dos 2 anos.

Durante um bom tempo, ficaram dizendo que a infecção provocada por ele era transmitida aos bebês pelos adultos contaminados, mas que estes, por sua vez, passavam ilesos. Errado. O vírus sincicial respiratório — é dele que estou falando! —, ou simplesmente VSR para os íntimos, também é capaz de fazer um estrago danado nos pulmões dos mais velhos, acima dos 60 anos, e na saúde de adultos com menos idade até, mas com as defesas comprometidas por algum motivo.

Chega esta época, março, quando todo ano começa a subir uma onda de casos que só cai a partir de julho, as internações de bebês por causa do VSR se tornam frequentes. Apenas, ninguém se iluda: crianças não vivem na Terra do Nunca da história de Peter Pan, isoladas de nós.

"Se estamos vendo uma alta de infecção por VSR nelas, pode apostar que os adultos espelham essa situação", garante a infectologista Lessandra Michelin, que é professora há mais de duas décadas da UCS (Universidade de Caxias do Sul), no Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, gerente médica de vacinas da GSK. No ano passado, entre os brasileiros com mais de 60 anos que se infectaram pelo vírus sincicial, 21% acabaram morrendo, segundo dados da Fiocruz. Ou seja, um em cada cinco. Não é brincadeira.

Confundido com outras viroses

Por que, então, as pessoas falam do VSR como se fosse assunto exclusivo do pediatra? Primeiro, porque a ameaça pode ser até maior se quem pega esse vírus tem poucos meses de vida ou mal nasceu. Isso é fato. "E também porque geralmente sabemos quando uma criança está com o vírus sincicial: ela se torna um bebê chiador, que parece soltar um sopro ou suspirar a cada vez que expira", explica a doutora Lessandra.

Pelo estetoscópio, esse som se torna tão claro que, cá entre nós, ele já basta para os ouvidos de médicos experientes. Eles só pedem o teste por desencargo de consciência, para confirmar que o culpado pelo adoecimento é o VSR. Nos adultos, porém, não há um sinal assim tão evidente para alguém deixar de suspeitar que seja uma gripe, um adenovírus ou outra virose respiratória qualquer.

"Mesmo quando o indivíduo vai parar na emergência, deixam de fazer o teste para ver se é o vírus sincicial", lamenta a doutora Lessandra. Por isso, ninguém fala dos milhares de casos. E quem está doente em casa talvez ache que pegou o influenza. Não que esse outro aí seja bolinho, mas...

Focado no trato respiratório

Como o influenza da gripe e o Sars-CoV-2 da covid-19, o vírus sincicial pode ser transmitido pelo ar, se alguém infectado fica próximo de você. Pior se tosse ou se espirra ao seu lado. A infecção pode, ainda, passar de uma pessoa para outra pela saliva.

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Nem é preciso beijar. Basta quem está com o VSR levar a mão à boca e, na sequência, cumprimentar o outro. Se este esfregar o rosto, coçar o nariz ou morder as unhas sem higienizar as próprias mãos antes, o vírus sincicial terá a oportunidade de entrar — pelos olhos, pelo nariz ou pela boca. E ele se aproveita dessas brechas mais que outros.

Uma pessoa com gripe transmite o influenza para uma única pessoa. Quer dizer, a taxa de transmissão desse vírus é de 1 para 1 — ou, se quer precisão, de 1 para 1,5. "Mas, quando se trata do vírus sincicial, uma pessoa infetada transmite para outras três", conta a doutora Lessandra. Ou seja, se é para competir, podemos dizer que o VSR tem o dobro de capacidade de se espalhar em relação ao influenza.

"Outra diferença é que ele é completamente focado no trato respiratório", diz a infectologista. "O Sars-CoV-2 da covid-19, por exemplo, apesar de atacar fortemente os pulmões, é capaz de infectar vários órgãos do corpo. Assim como o vírus da gripe que, além de fazer mal ao trato respiratório, pode dar meningite, miocardite, insuficiência renal e muito mais."

Mas o vírus sincicial, não. Ele, primeiro, gera um processo inflamatório nas fossas nasais e, na sequência, só quer saber de migrar pela "árvore" formada por brônquios e bronquíolos, que são feito os galhos mais finos, arriscando alcançar o tecido pulmonar propriamente dito.

Como o VSR age

Como o organismo quer se defender do invasor, há uma enorme produção de muco. Resultado: o nariz escorre e a cabeça fica pesada e doendo. Sem contar a febre. O catarro, somado à inflamação, estreitam o caminho do ar pelos bronquíolos — que, logicamente, são muito mais finos nos bebês, daí o chiado do ar forçando a passagem.

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A longo de sua descida em direção aos pulmões, o VSR vai atacando células do epitélio que reveste o trato respiratório, usando duas proteínas para isso — a G e a F. A primeira, feito um gancho de alpinista, serve para prendê-lo firme em uma dessas células. E a outra consegue furá-la, para que ele possa colocar o seu material genético lá dentro.

"Quando isso acontece, as células infectadas vão rompendo suas paredes e formando uma maçaroca com vários núcleos agrupados", descreve a doutora Lessandra. "Ela é o tal do sincício, que dispara um processo inflamatório dos mais intensos."

Risco elevado de reinfecção

Diante desse vírus, para resolver a situação o organismo depende muito da parceria de duas células de defesa, em uma quantidade relativamente grande: a CD4, que protege contra a doença grave, e a CD8, que vai eliminar o VSR. "Ocorre que ele acaba infectando essas células e, muitas vezes, consegue destruí-las", conta a doutora Lessandra.

No final, é como se deletasse os arquivos que continham informações a seu respeito. O sistema imune não guarda a menor memória dessa infecção. "Daí que, durante uma mesma temporada do vírus, entre o outono e o inverno, a gente pode se reinfectar", explica a médica. "Se comparar com o influenza, a não ser quando surge uma nova cepa muito diferente, a pessoa só corre o risco de pegar gripe uma vez por ano ou temporada."

A questão é que, a cada vez que alguém mais velho contrai o VSR, a ameaça de doenças crônicas comuns na terceira idade se desestabilizarem cresce. De acordo com Lessandra Michelin, o paciente com insuficiência cardíaca, por exemplo, tem 7,6 vezes maior risco de ficar hospitalizado por causa do coração, ao pegar o vírus sincicial. Em quem tem diabetes, a probabilidade de internação é 6,5 maior, porque a glicemia vai para as alturas, mesmo usando insulina.

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A vacina que está chegando

Até há pouco tempo, não havia imunizante para nos defender de tanto perrengue. Em maio do ano passado, porém, o FDA, agência que regula medicamentos nos Estados Unidos, aprovou a primeira vacina do mundo contra o vírus sincicial — a Arexvy, da GSK. Sete meses depois, em dezembro, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) fez o mesmo.

A vacina é feita a partir da proteína F, aquela que o vírus usa para furar as células, e deve ser dada em dose única para pessoas acima de 60 anos. Ela, claro, já induziria alguma produção de anticorpos contra essa proteína. "Mas, para se defender do vírus sincicial, o organismo precisa das células CD4 e CD8", lembra a doutora Lessandra, que durante anos a fio participou inclusive do CTAI, o Comitê Técnico Assessor em Imunizações do Ministério da Saúde.

Ela conta que os cientistas da GSK encontraram uma saída colocando na vacina, além da proteína do vírus, o mesmo sistema adjuvante que usaram no imunizante contra o herpes zóster. Ou seja, incluíram moléculas que conseguem a proeza de atiçar o sistema imunológico, mas sem aumentar a inflamação. "O adjuvante aumentou a quantidade de anticorpos, fez com que durassem mais e, para nosso espanto, levou o organismo a produzir células CD4 específicas para o vírus sincicial no mesmo nível de pacientes jovens", conta a médica.

Para ter ideia, um adulto jovem em contato com o VSR costuma ter níveis de células CD4 oito vezes maiores que idosos, em média, por causa do fenômeno natural de derrocada imunológica com a idade, ou imunossenescência. Aliás, é por causa disso que pessoas acima dos 60 anos tendem a apresentar quadros mais graves da infecção.

Agora, porém, os mais velhos que foram vacinados contra o VSR estão quase empatados com os mais moços, porque o imunizante levou ao aumento de seus níveis de células CD4 específicas para esse vírus. Isso explica a eficácia, que foi de 82,6% para prevenir a infecção e de 94,1% para evitar quadros severos.

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Depois de duas temporadas de vírus sincicial no ar, os indivíduos vacinados continuaram com essa proteção — que, por tabela, diminui o risco de o vovô transmitir a doença para o netinho. Ora, quando os adultos estão protegidos contra o vírus sincicial, os bebês, indiretamente, ficam um pouco menos vulneráveis também.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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