Lúcia Helena

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Reportagem

Teste de sensibilidade alimentar: caro, inútil e potencialmente perigoso

Será que o chuchu, em uma vingança silenciosa pela fama de insosso, seria culpado pela nossa falta de concentração? Ou seria a acelga a grande hipócrita do cardápio, com ares de magrinha, mas levando a gente a engordar? O espinafre, em vez dar a força de um marinheiro Popeye, derrubaria alguns de fadiga — difamam os "Brutus". Já pela barriga estufada de gases talvez sejam acusados a manga e o peito de peru. O fôlego do asmático, quem sabe, voltaria se ele tirasse do prato o queijo e o tomate ou, ainda, o orégano e a farinha, dando adeus à pizza do sábado.

Estes são apenas exemplos aleatórios do disparate. O laudo de um teste de sensibilidade alimentar pode sugerir que os responsáveis — não só por esses problemas, mas por diarreias, constipações, dores de cabeça e muito mais — são outros, entre as centenas de ingredientes que lista, da carne de vaca à de avestruz, do pão nosso de cada dia ao caviar.

Por um precinho que não é de banana, que chega a beirar os 3 mil reais, quem o oferece promete dosar quanto o sistema imunológico produz de IgG, ou imunoglobulina G, sempre que você consome esses itens. Assim, médicos e nutricionistas poderiam recomendar a exclusão de alimentos do dia a dia para aliviar para as mais variadas mazelas.

O argumento, repetido aqui e ali, é de que a IgG entregaria o processo inflamatório por trás desses perrengues. Só que não faz sentido. E, para piorar, embora muitos serviços esclareçam que o tal teste não é indicado para casos suspeitos de alergia alimentar, as pessoas fazem uma "salada" na cabeça. Confundem tudo.

"O fato é que esses testes não têm indicação para intolerâncias, para compreender reações adversas a alimentos, muito menos para alergias. A dosagem da IgG não tem papel algum no diagnóstico, nem serve para nortear qualquer tratamento", assegura, taxativa, a alergista e pediatra Renata Rodrigues Cocco. E não se trata de uma opinião pessoal — embora conte a sua experiência de mais de duas décadas em alergias alimentares. Consensos nacionais e internacionais de sociedades médicas fazem o mesmo alerta.

Quando você come e nada acontece

Aí mesmo é que, por ironia, a IgG está nas alturas: quando você come e passa bem, obrigado. Ora, o sistema imunológico produz uma série de imunoglobulinas e, sem dúvida, a IgG é a que é encontrada em maior concentração no sangue. "Ela está envolvida no combate a infecções em geral", justifica a médica, que hoje é professora de Medicina na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, em São Paulo.

Mas, no que diz respeito aos alimentos, a IgG não está lá para comprar briga. Ao contrário, ela aumenta quando você tolera algo que ingeriu. "Portanto, qualquer um que colher sangue para esse teste virá com IgG positiva, em maior ou menor grau", afirma Renata Cocco.

A lógica é que essa molécula fique até mais elevada diante de ingredientes comuns nas refeições. "E que suba quando alguém está deixando de apresentar reação a algum alimento", acrescenta a alergista.

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Níveis maiores apontam para a tolerância oral. O termo favorece o mal-entendido. "O conceito, aqui, não tem a ver com intolerância alimentar, mas com proteção à crise alérgica. O IgG aumenta quando a alergia sai perdendo. E isso pode acontecer com maior frequência em crianças", explica a especialista.

Sim, no público pediátrico, algumas alergias são efêmeras, porque têm a ver com uma falta de maturidade do sistema imunológico. "Elas podem passar aos 3 anos, aos 7, aos 10. Quando isso acontece, a IgG sobe", explica a doutora. O que persiste é o desconhecimento ou a cara de pau indigesta de quem solicita o teste de sensibilidade alimentar até para a meninada que sofre de alergia alimentar.

Noutro dia, Renata Cocco atendeu um garotinho de 4 anos que quebrou o fêmur pulando corda. "Por causa de um teste desses, tiraram um monte de alimentos de sua dieta e não repuseram cálcio. Fiquei louca quando o vi: ele tinha desenvolvido um quadro de raquitismo", relembra.

Não dá para se basear no laudo do tal teste para direcionar dietas restritivas. Isso, em qualquer idade, aumenta o risco de carências nutricionais importantes e suas consequências. Sem contar que é o inverso do que muita gente presume: "Se você tem IgG, a probabilidade de não ser alérgico é bem maior do que a de ter uma alergia", reforça a médica. Simples assim.

Na boca do povo

Quando terminou sua residência na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que foi sua "casa" por cerca de 20 anos, Renata Cocco encontrava no ambulatório muitos casos de asma, outros tantos de rinite, mais alguns de dermatites e só meia dúzia de gatos pingados se queixando de alergias a alimentos.

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De família de origem italiana, para a qual a vida social acontecia em volta de uma mesa, ela — que, diga-se, adora comer — logo se sentiu tocada com os pacientes obrigados a restringir alimentos por causa de alergias. E mergulhou nesse mundo durante o mestrado, que fez em parte no Mount Sinai, nos Estados Unidos. Depois, ao longo do doutorado, foi estudar frações de proteínas de alimentos capazes de causar crises alérgicas em Uppsala, na Suécia.

"Hoje, a prevalência de alergias alimentares explodiu", constata. Estima-se que de 2% a 5% das crianças nos Estados Unidos tenham alguma alergia alimentar. O problema, capaz de surpreender em qualquer idade, aparece em 1% a 2% dos adultos.

"É uma doença da vida moderna. Com o saneamento básico, as vacinas e os antibióticos, a mortalidade infantil diminuiu", diz a médica. "Em compensação, é como se o sistema imunológico passasse a trabalhar de outra forma. Declara guerra a proteínas encontradas em comidas e bebidas. No passado, o leite estava no topo do ranking desses ataques. Hoje, as castanhas e o amendoim vêm ocupando esse lugar, disparando reações alérgicas intensas em crianças cada vez menores", observa a professora.

Por terem se tornado mais comuns, as alergias alimentares caíram na boca do povo. "Com isso, qualquer mal-estar depois que você coloca algo na boca é tachado de alergia alimentar", nota a médica. E aqueles testes que não resolvem nada, infelizmente, ganham espaço.

Os dois mecanismos das alergias alimentares

Até por predisposição genética, o organismo pode apelar para um ou outro. O mais temido envolve a IgE, ou imunoglobulina E: "Acontece segundos ou, no máximo, duas horas depois da ingestão do alimento", descreve Renata Cocco. "A pessoa pode ter só uma vermelhidão na pele ou um inchaço nos olhos e na boca. Alguns casos, porém, culminam em anafilaxia." A glote se fecha e o ar não consegue passar. Os vasos sanguíneos, se dilatam e a pressão cai, a um ponto que comprometer o sistema cardiovascular. Perigo.

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No outro mecanismo, a alergia é resultado da reação intempestiva do linfócito T de defesa, atacando a proteína de um alimento como se fosse uma total estranha. Isso é mais comum em bebês menores que 2 anos, que apresentam diarreias e, às vezes, até sangue nas fezes, dias ou semanas após a ingestão do alimento. Note, porém, o seguinte: nenhum dos dois mecanismos tem a ver com com a IgG.

Os testes para os casos de alergias

Seja como for, na consulta, é imprescindível uma conversa boa para ver se existe associação entre a ingestão de determinado alimento e o surgimento de sintomas. "Só aí partimos para exames laboratoriais, tentando confirmar essa suspeita", diz a Renata.

O único método 100% fidedigno seria o da provocação oral. O nome já diz muito: o paciente ingere o alimento investigado sob supervisão médica, dentro do ambiente de um hospital. Afinal, vá que tenha um choque anafilático! "Só que, pela dificuldade e pelo risco, a gente não o utiliza tanto", comenta a professora.

Como alternativa, aparece uma gama de testes que não apontam com tanta certeza o que está acontecendo. Um exemplo são aqueles cutâneos, feitos no braço. Eles ajudam no diagnóstico das alergias mediadas por IgE, mas podem dar até 50% de resultado falso positivo, principalmente quando você coloca em contato com a pele proteínas de alimentos consumidos com frequência. "Aí, vai dar alguma reação", aposta a médica.

Já nas alergias pelo linfócito T, esses testes não vêem nada, porque flagrariam a IgE, que não tem a ver com a história. O que vale, então, é aquele trabalho de detetive durante a consulta — e, de novo, nenhum teste de sensibilidade alimentar.

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E nas intolerâncias alimentares?

O próprio nome desse teste soa aos ouvidos como se ele tivesse serventia nos episódios em que a pessoa digere mal um alimento. Ledo engano. "O problema da intolerância está na falta de alguma enzima para quebrar um de seus componentes durante a digestão", explica a doutora. "E isso não tem a menor participação das defesas e de suas imunoglobulinas."

Há , ainda, casos que não são de intolerância, tampouco, de reações alérgicas. Neles, pode existir a liberação de substâncias, como a serotonina, e isso explicaria reações adversas, como a das pessoas que sentem dor de cabeça se comem queijo ou banana. Mas — pense! — não envolvem o sistema imunológico, tornando a absurda ideia de dosar a IgG até mais difícil de engolir.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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